Hoje, olhando o céu tão cinzento a ameaçar-nos de Inverno, tive saudades do tempo em que as tardes não custavam nada a passar. Nesse tempo, eu miúda de tranças ainda, encostava a cara ao vidro gelado da janela e ficava a ver chover lá fora. As grossas gotas de chuva molhavam tudo, as folhagens das árvores, as laranjas já quase maduras, as heras da parede e nas águas do tanque parado faziam círculos dentro de círculos. Dentro da sala, o som inequívoco da agulha de crochet a passar na linha enchia tudo. E também o tic-tac do relógio. Depois, a minha avó tirava os óculos de ver ao perto e ia para a cozinha fazer-me leite-creme para o lanche.
Eu era muita gira e fashion ou quê??????
(a minha mãe garante que eu era a mais gira das redondezas)
Hoje lembrei-me das horas que passei pelos caminhos velhos da minha aldeia à procura de folhas pintadas de cores outonais. Folhas lindas pintadas por excêntricos pintores imaginários. Eram folhas para pendurar nas paredes da escola. Uma mudança de estação implicava uma mudança de decoração! Isto passou-se em tempos em que a liberdade não era apenas uma palavra e as crianças podiam ser crianças pelas ruas, correndo, rindo, chapinhando nas poças de água, comendo amoras nas bermas da estrada e em que só se voltava à casa perto do anoitecer, cansadas, sujas mas felizes. Eram tempos em que simplesmente se era criança e isso bastava para ter um sorriso de alegria no rosto!
Desde sempre tive a mania de guardar coisas. Comprei várias caixas de vários tamanhos e feitios e cores e baptizei-as com o nome de caixas das tralhas.
É claro que não são tralhas, são recordações, memórias na forma de objectos, pedaços de mim. Passa-se muito tempo que nem sequer lhes toco, mas o facto de ali estarem sossega-me, deixa-me tranquila porque sei que aquela parte do meu passado continua a pertencer-me e não me irei esquecer dela quando a idade me começar a atraiçoar. Ninguém me pode roubar estas memórias.
Ontem estava a arrumar o armário onde guardo parte dessas caixas e uma dela caiu-me no chão, abrindo-se e espalhando parte do seu conteúdo. Baixei-me para começar a apanhar as coisas e arruma-las no sítio, mas em vez disso sentei-me no chão e comecei a pegar em cada uma das coisas com um cuidado quase religioso, a ver se tudo estava intacto e ao mesmo tempo obedecendo ao chamamento irresistível de lembrar o passado.
Naquela caixa guardo todas as coisas especiais que fizeram parte duma parte especial da minha vida: o meu primeiro grande amor.
Dentro da caixa repousam bilhetes de comboio das viagens que fiz para o ver, antigas cassetes de música que só ele ouvia, cadernos cobertos de palavras a contar histórias, sentimentos, emoções e pequenos nadas que eram tudo naquela altura. Eu não devia ter mexido na caixa, eu não devia ter sequer ido ao armário sabendo que podia ver a caixa, porque a verdade é que eu já sabia como ia terminar a noite.
Confesso que sempre que mexo nas caixas das tralhas fico deprimida e por isso deveria evitar mexer nelas, mas de vez em quando o apelo é demasiado forte. É como se a minha mente, inconscientemente, me levasse até ela, como se fosse vital não deixar morrer estas memórias. Memorias que contam a minha vida, que contam como cresci, como me tornei mulher.
A história terminou mal. Sofri. Chorei. Sofri muito. Chorei. Não pudemos ficar juntos. Eu era demasiado nova e ele muito mais velho. Eu era demasiado inocente e ele tinha demasiado a perder. Eu era pobre e ele não. Eu era apenas uma menina com ânsias de ser mulher que adorava um homem que não me podia fazer feliz.
Peguei nas coisas do chão, uma a uma, com muito cuidado. Um soluço preso na garganta e os olhos a arder. Bastava apenas um click para despoletar um manancial de lágrimas.
Estranho. Tantos anos se passaram, tantas rugas na minha cara, cabelos brancos na minha cabeça e ainda me fazia sofrer. Já não há amor. Apenas uma mágoa profunda que continua a fazer-me sofrer. Apenas um reviver de uma situação que doeu. Sofrimento. Dor. Frustração. Paixão. Amor. Tanta coisa. Ficou tudo dentro de mim. Ficou a marca indelével de um grande amor.
Coloquei a tampa na caixa, guardei-a no armário. Limpei as lágrimas. Fechei a porta. Virei as costas e ergui a cabeça, afinal as memórias são muito importantes, mas a vida é agora.
nós eramos muitos mais mas não encontrei a imagem perfeita:o)
Naquela altura éramos seguramente mais de trinta. Avós, tios e tias, primos e primas. Quando chegava a primavera juntavamo-nos todos cá na terra e era uma alegria tão grande que muitas dias antes já mal dormia de ansiedade! Vinham os primos de Gaia, os primos da Póvoa e de muitos outros lugares, que é o que dá ter uma família enorme!
Eram sempre domingos estes dias de festa e que me lembre, esse dias, foram todos de sol. E ainda bem, porque estas festas consistiam em enormes pic-nics no pinhal onde se assavam sardinhas, se comia regueifa, broa e azeitonas. Também se levava pão-de-ló e ovos tingidos.
Os primos maiores arreliavam os mais pequenos e era só ouvi-los choramingar um pouco para logo de seguida correrem atrás do arreliador! Também jogávamos aos índios e cowboys. E ainda dava tempo para procurar covas de coelho e de raposa. Mas o que mais gostava era mesmo das descidas vertiginosas sentados em cima de um cartão, por uma encosta ingrime do pinhal. Muitos terminavam o dia de joelhos esfarrapados e calças rotas, mas não fazia mal, porque era demasiado divertido para darem sequer conta disso!
Quando o dia terminava e era hora de arrumar a louça, dobrar as mantas, guardar tudo dentro das ceiras de ir à feira e voltar para casa, já estávamos de orelha murcha cheios de saudades uns dos outros. Cada um voltava para suas casas e dormíamos sem sono de tão cansados que estávamos.
Tenho pena que estes dias não se voltem a repetir, mas todos nós crescemos, formamos família, alguns até já nem fazem parte deste mundo... fica a saudade, ficam as boas memórias, ficam as histórias para contar...
imagem retirada da net
Lembro-me que nestes dias de aborrecida chuva fria que entra na pele sem pedir licença e nos enregela os ossos, vinha da escola saltitando pelas poças de água, não tanto evitando-as, mas sim chapinhando-as para ver com alegria a que altura saltavam as pingas geladas. Reunia com o resto dos miúdos do bairro procurando salamandras, que na altura não sei bem porquê as baptizamos de saramelas. Eram bichos feios, repelentes, e que apareciam às dezenas mortos na nossas rua sem carros. Depois íamos subir muros cheios de musgo verde que nos manchava a roupa e invariavelmente dava origem a raspanetes.
Só mesmo quando a noite começava a cair e o frio me punha o nariz vermelho é que voltava para dentro não sem antes a minha avó já me ter chamado umas dez vezes! Sabia tão bem sentir a chuva fria na cara, a liberdade, a natureza no seu estado puro…
Depois da noite cair, secar o cabelo, tirar os sapatos encharcados, pôr uma manta aos ombros, sentava-me em cima da caixa da lenha, aquecendo-me no fogão de lenha, vendo as chamas crepitar e sentindo o aroma da sopa de feijão rajado e da broa acabada de cozer…
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi