Falar sobre tudo e mais alguma coisa

Quinta-feira, 8 de Setembro de 2011
Matilde ou Para onde me leva esta Caminho?

 

 

(...)

Algum tempo depois do divórcio ter acontecido tinha conhecido uma pessoa, um homem dono de uns belos olhos azuis. E no momento em que viu esse homem de olhos azuis, o homem sem rosto com quem sonhara antes materializara-se. E esse homem estava ali em cima também, na festa. Pertenciam ambos ao mesmo grupo de amigos e um dia os seus olhos tinham-se encontrado. Depois desse olhar Matilde nunca mais foi a mesma pessoa. Esse olhar tinha ficado cravado na sua memória. E em nenhum dia depois desse dia, deixara de ver essa mesma cara até ao dia presente. Infelizmente essa pessoa não partilhava do seu sentimento. Esse olhar tinha sido como tantos olhares. Como teria olhado para uma árvore, para um prédio ou para uma ponte. Nele não despertara o que despertara nela. Apesar de não ser mais novo do que ela, ainda não vivera muito do que ela já tinha vivido. Ela já tinha casado e ele não. Ela já tinha tido filha sua filha e ele não tinha nenhum. Ela já passara pelo divórcio e ele nem sabia o que era o casamento. Estavam a muitos quilómetros de distância um do outro. Fisicamente eram quase vizinhos, emocionalmente estavam em lados opostos do universo. Matilde sabia que mesmo que um dia ele a olhasse com mais atenção não seria possível uma relação. E isso magoava ainda mais. Matilde sofria com a injustiça de ter sido atingida pelo olhar de um homem que não poderia ser seu. Perguntava ao universo mas o universo não tinha respostas. Julgava ela que não deveria ser permitido gostar de quem não gosta de nós. Mas era. Prova evidente era este seu gostar de um homem que a via transparente.

 

Matilde tinha completado trinta e cinco anos no Verão. Se não estivesse com a sua filha ninguém lhos daria. Era uma mulher de cabeleira negra e que de muito farta e ondulante se fazia notar onde quer que estivesse. Aos trinta e cinco poucos cabelos brancos manchavam o negro asa de corvo. Do pai herdara os olhos azuis e as pestanas fartas. Da mãe, o peito generoso! No conjunto, Matilde não se podia queixar. Aos trinta e cinco anos era uma bela mulher. Dona de umas pernas bonitas, que quase sempre usava escondidas, caminhava segura pelas ruas da velha cidade onde vivia. Ainda havia quem virasse a cara para a ver passar. No entanto, dentro de si, vivia a escuridão e no espelho via reflectida uma mulher desinteressante e gasta. Como poderia sequer ter a ilusão de que agradaria ao homem que retivera no olhar? Velha e gasta, de alma puída e de coração partido em pedaços? Não tinha a ilusão, já não a tinha…

 

Era tarde e a chuva não fazia tenções de parar. Matilde saiu do aconchego das árvores e caminhou em direcção a casa. As ruas vazias da velha cidade devolviam o som dos saltos dos sapatos. Um gato atravessou-se no seu caminho. A luz de um candeeiro apagou-se à sua passagem. Seria um sinal? Estava cansada e os olhos cheios de lágrimas mal a deixavam ver por onde ia. Continuou devagar. A sua casa estava vazia e continuaria vazia. A sua filha estava com o pai nesse dia. As novas rotinas impostas diziam que de quinze em quinze dias a filha iria passar o fim-de-semana com o pai. Nesses dias era pior. Matilde andava pela casa sem despir a t-shirt velha com que dormia. Comia cereais e lia sem parar. Por vezes, levantava os olhos do livro e via pendurada nas paredes a solidão. Outras vezes ia dar com ela dentro da gaveta da roupa interior onde agora repousava apenas a sua. De noite adormecia a chorar e de manhã apenas o seu lado da cama estava desfeito. Do outro lado nem uma ruga. Matilde ia então colocar-se em frente ao espelho e chorava outra vez ao ver o seu rosto coberto de marcas de choro nocturno.  Depois lavava a cara e iniciava o seu já gasto discurso. Dizia a si própria que estava bem melhor assim, sozinha. Dizia que a liberdade ganha com o divórcio era o melhor que poderia desejar. Viveria assim sem amarras para o resto da vida e poderia fazer apenas o que lhe desse na gana. Em voz alta dizia que o homem dos olhos azuis não era de todo uma boa escolha. Que o seu coração errara. Matilde esforçava-se por pensar com racionalidade. Ela sabia que a sua vida assim sozinha era bem mais tranquila. Também pensava na parte financeira. Matilde ganhava rés-vés o que precisava para se sustentar, mas não teria como embarcar nos planos de pessoas que não têm responsabilidades. Como poderia achar que uma relação agora faria sentido sem ter problemas de logística?  E quando o seu par quisesse ir de férias? Ou jantar fora? Teria que ser a desmancha-prazeres? Matilde rematava o assunto com a parte mais complexa. Não queria mais filhos. Não poderia estar com alguém que ainda não os tivesse. Seria isto justo para ela? A escolher ter que escolher em função de quem já tivesse filhos ou não, de quem já tivesse sido casado ou não, de quem tivesse dinheiro ou não? E o amor? E a química? E as afinidades?

 

Matilde chegou a casa e fechou a porta atrás de si. Lá dentro, o silêncio. Caminhou até ao seu quarto e em frente ao espelho de corpo inteiro tirou a roupa molhada. Olhou-se ao espelho, nua, e viu uma mulher comum. Tocou com a mão no peito e lembrou-se de ter feito o mesmo gesto aos dezoito anos. Tinha sido na noite depois de ter feito amor a primeira vez com o homem que fora seu marido. Nessa altura tinha a vida toda pela frente. E todos os sonhos do mundo cabiam dentro de si. Matilde pensou que seria bom voltar aos dezoito anos e não apenas pelo corpo mais firme que agora já não tinha. Matilde queria ter a oportunidade de escolher novamente, melhor. Era um exercício de pensamento inútil, bem o sabia. A vida é um caminho de ida, apenas. Não se pode voltar atrás, às encruzilhadas, para seguir por um caminho diferente do escolhido antes. Matilde sabia-o, mas não deixava de sentir a frustração causada por essa verdade.

 

Baixou os braços e arrastou-se até à cama. Debaixo dos lençóis frios, nua, deixou que as ultimas lágrimas caíssem na almofada. Pensou novamente no homem que amava e que não a amava. Pensou no abraço que o viu dar a outra mulher e sentiu de novo a mesma dor que sentira e a pequena réstia de esperança que por vezes ressurgia, a abandoná-la de novo. Pensou na sua filha. Pensou que talvez essa dor amanhã estivesse menos dor, se tivesse sorte. Pensou no sorriso bonito da sua filha. Pensou que talvez no dia de amanhã fosse sentir o mar de Outubro nos pés. Pensou que talvez no dia de amanhã o sol brilhasse e lhe desse a força que precisava. Pensou que o amanhã seria mais um dia, mais um passo no longo e misterioso caminho da vida. Ninguém sabe nunca para onde nos leva este caminho.

 

Aos poucos o sono foi chegando e Matilde deixou-se envolver em sonhos. De manhã a chuva já não caía e o sol entrava pela janela que no meio das lágrimas se tinha esquecido de fechar.

 

Fim

Texto de ficção inédito escrito por Cláudia Moreira 

 

 

 



publicado por magnolia às 09:18
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Quarta-feira, 7 de Setembro de 2011
Matilde ou Para onde me leva esta caminho?

imagem retirada da net

 

 

 (...)

Agora o tempo passara e as feridas pareciam estar curadas. Já não chorava todas as noites na almofada por não ter sido capaz de manter o casamento. Já não acordava sufocada de lágrimas por ter sonhado com o ex marido. Já não sentia quase nada. Ficara um vazio nos dias de Matilde. E nas noites. Nas noites a solidão era mais intensa. Brilhava no escuro e não a deixava dormir. Sentia o vazio no outro lado na cama e na pele a ausência de um carinho. A filha dormia no quarto ao lado e ela sabia que por ela faria tudo, até mesmo abdicar de uma nova companhia, mas também gostaria de ser ainda feliz. Seria correcto ter de novo alguém? Trazer esse alguém para o lar da sua filha? Um desconhecido? Poderia obrigar a sua filha a suportar essa presença? Seria justo para ela? E para si? Seria justo para Matilde abdicar do amor para não submeter a filha a essa presença? Não sabia. Matilde não sabia, por mais que pensasse.

 

Mesmo assim sonhava. Matilde sonhava. Sonhava com uma nova pessoa na sua vida. Um novo amor. Nos seus sonhos essa pessoa não tinha rosto, mas tinha um corpo e mãos e essas mãos tinham dedos que lhe acariciavam de vez em quando a pele do rosto. Imaginava então que os braços desse corpo a abraçavam por trás enquanto cozinhava e Matilde fechava os olhos, deliciada, enquanto lavava os legumes para a sopa. Um sorriso desenhava-se então nos seus lábios por breves instantes. Se se esforçasse um pouco até podia sentir o coração desse corpo a bater nas suas costas no meio desse abraço. Da boca dessa pessoa saiam palavras de amor e sorrisos. E beijos. Sentia falta dos beijos. E da intimidade dos beijos.

 

Matilde não pensava em paixão, mas pensava em amor. Recusava-se a acreditar que aos trinta e cinco anos era o fim do amor na sua vida. Quantos mais anos viveria ainda? Trinta? Quarenta? Seriam todos vazios de sentimentos? Um nó apertava-lhe o peito. A alma, se a tivermos. Até a sua filha em breve partiria rumo à sua própria vida e ela ficaria sozinha. Como seria depois viver numa casa silenciosa? Vazia? Nessa altura seria tarde demais para remendar o buraco causado pela falta de amor. Matilde estava convencida disso. O amor pode ser encontrado em qualquer altura da vida, diziam-lhe. Mas Matilde tinha receio que fossem apenas palavras de consolo, puramente de consolo. Duvidava.

 

A chuva continuava a cair. O corpo de Matilde tremia, mas ela julgava que era da tristeza que sentia. Matilde parecia não sentir a chuva que lhe molhava o cabelo, a cara e lhe colava a roupa ao corpo. De onde estava podia ver a janela iluminada do apartamento onde a festa continuava a decorrer. Não deveria ter aceite o convite para a festa, mas aceitara. Precisava de sair, conhecer novas pessoas. Por vezes saia, mas nunca saia do seu perímetro de conforto. Convivia com as mesmas pessoas, frequentava os mesmos lugares. Matilde já não sabia como socializar e muito menos com o sexo oposto. Já não sabia dançar a dança que dançam os que se querem apaixonar. Com o tempo Matilde tinha esquecido como se fazia.

 

(...)

Ficção

Cláudia Moreira



publicado por magnolia às 09:25
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Sexta-feira, 2 de Setembro de 2011
Matilde ou Para onde me leva este Caminho?

imagem retirada da net

 

 

Depois de descer os oito andares que a separavam daquela sala, Matilde chegou à rua. Uma chuva miúda caia do céu molhando a calçada. Era princípio de Outubro e ar tinha o cheiro da terra molhada. Ao lado havia um jardim, pequeno, mas cheio de árvores altas e frondosas. Das suas copas caiam folhas que atapetavam o chão. Matilde refugiou-se na obscuridade do jardim. Não queria ser vista. O nó que trazia na garganta desatou-se e soltou o manancial de lágrimas salgadas que se misturavam agora com a chuva. Era tarde e sentia-se exausta. Quase a quebrar. A quebrar.

 

Na cabeça, muitas ideias que se recusavam a partir. Matilde sentia-se terrivelmente sozinha e abandonada. O divórcio não tinha sido apenas libertação. Tinha sido muito mais que isso. Com o divórcio tinha vindo a solidão e de mão dada com ela a tristeza profunda. Depois desse dia, desencadeara-se uma das mais amargas fases da sua vida. Matilde sabia que não seria fácil, mas não sabia até que ponto seria difícil…

 

Matilde não tinha podido ficar casada. O sonho de menina transformara-se num pesadelo e depois de alguns anos tinha sido obrigada a abdicar daquele casamento com o homem que amara tanto. Aos poucos o amor transformara-se em algo parecido com ódio. A filha nascera ainda do amor. Mais tarde, passara noites em claro com ela ao colo, mas as lágrimas que vertia eram por causa daquele homem ciumento que não a respeitava. Um dia a decisão estava tomada por si só. E era irreversível. Não havia outro caminho a tomar. Mas o caminho do divórcio é duro e fere. E as feridas são difíceis de sarar. Matilde tinha levado quase um ano até tomar a decisão definitiva. Até ali mil perguntas tinham andando às voltas no seu cérebro. Queria muito dizer ao marido o que lhe ia na alma. Por vezes chegava mesmo a articular as primeiras palavras da frase que a levaria a dizer o que pensava. Depois calava-se com receio de não ser o mais acertado. A filha, pequena ainda, não fazia ideia nenhuma do sofrimento da mãe e adorava o pai. Seria certo roubar-lhe o convívio diário com o pai? Por sua causa? Como poderia um dia justificar essa sua atitude perante a filha? Ela entenderia? Perdoar-lhe-ia? As dúvidas sufocavam-na e não a deixavam dormir de noite. Passava os dias com olheiras profundas e o rosto pálido de não descansar. Ia sentar-se na cama da filha a vê-la dormir e a questionar-se sobre o que fazer. Por vezes tomava a decisão, mas com a luz da manhã chegavam novamente as dúvidas.  

 

(...)

ficção

Cláudia Moreira



publicado por magnolia às 14:56
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Quinta-feira, 1 de Setembro de 2011
Matilde ou para onde nos leva este caminho?

 

imagem retirada da internet

 

 

A primeira coisa que sentiu foi algo a partir, como um vidro a cair no chão. Depois, cada pedaço afiado do coração partido entrou na carne do seu peito e a dor espalhou-se rapidamente pelo resto do corpo.

 

Eles continuavam abraçados. De onde estava podia perfeitamente ver a forma íntima como ele a abraçava, rendido, em busca de protecção. Os braços dele em volta dos braços dela, o rosto dele no ombro dela, enterrado nos seus cabelos loiros. Se se esforçasse um pouco, ela poderia perfeitamente imaginar que ele estaria a apreciar o cheiro a camomila do champô dela e a sentir na pele do rosto a maciez dos seus fios dourados.

 

O abraço demorou um tempo infinito. E durante todo esse tempo as lascas afiadas foram-se enterrando mais e mais fundo em cada músculo, nos pulmões, no diafragma e por fim raspavam-lhe já o esterno e as costelas. Se Matilde continuasse ali a olhar, em breve as pontas afiadas do coração partido furariam a pele e ficariam à vista. Não seria bonito de se ver.

 

Gostava dele. Gostava muito dele. Matilde fechou os olhos e mordeu o lábio inferior. Recolheu a sua mente até ao mais profundo de si e tentou não chorar. Não podia chorar ali em frente ao homem que lhe enchia os pensamentos de dia e os sonhos de noite. Desejou poder derreter e fundir-se com a terra, desaparecer no solo para sempre. Em vez disso, sentia cada célula do seu corpo pulsar ao ritmo do seu coração.       

 

Matilde fez um esforço para abrir os olhos e enfrentar a realidade. Afinal o tempo tinha sido misericordioso com ela e não estava estagnado e eles já não estavam no seu campo de visão. Aproveitou o momento para se levantar e sair. Precisava de ar. A sala estava cheia de gente e não foi fácil desviar-se dos grupos animados e barulhentos que conversavam e riam. As conversas misturavam-se com o fumo dos cigarros. As mãos seguravam copos cheios de bebidas coloridas. A festa estava, talvez, no seu auge. Alguns amigos olharam-na como se estivesse doente, mas Matilde não se deteve a explicar. Chegou à porta da rua com as pernas a tremer, as mãos não queriam obedecer e só a custo a conseguiu abrir. Depois e só já no elevador se permitiu respirar. No espelho que cobria toda uma das paredes do elevador viu reflectida uma mulher profundamente magoada. Desejou não ser essa mulher.

 

(...)

texto de ficção

cláudia moreira



publicado por magnolia às 14:46
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