Por Cláudia Moreira para o blog Junkeira o texto "Cinema"
O Outubro tinha acordado fresco. Ela envergava um casaco azul céu de fazenda gasta e caminhava devagar, exibindo as pernas longas e belas, através das ruas pejadas de folhas coloridas. Ele vislumbrou apenas o casaco azul a entrar na porta do velho cinema antes de entrar também. O cinema já tinha visto melhores dias. A tinta a descascar das paredes, os velhos posters na parede a enrolar nas pontas, o cheiro a mofo, sinais da decrepitude de um edifício que outrora tinha sido majestoso. As matinés eram os filmes gastos, presos dentro de gastas bobines metálicas. Sentaram-se quase lado a lado, sem querer. Pelo canto do olho ele viu o perfil dela. Um nariz perfeito, um queixo perfeito, umas pestanas longas a sobressair nas sombras. Viram a dois, separados por alguns lugares, o clássico “The Swing Time”. Na tela, a Ginger e o Fred dançavam maravilhosamente bem, sorrindo, incansáveis, um para o outro. Na sala de cinema ela sorriu e ele também. Depois, sorriram um para o outro. A falta de mais espectadores na sala dava-lhes a condição de quase íntimos, como se estarem apenas ali os dois lhe desse a dispensa das apresentações formais e consequente conhecimento.
Nas tardes que se seguiram sentaram-se timidamente lado a lado. Sozinhos na sala. Sempre sozinhos na sala. Nestas tardes de Outubro o cinema parecia abrir as portas apenas para eles. Depois do “The Swing Time” seguiu-se o “Os homens preferem as loiras” e depois o “O pecado mora ao lado” e depois o “Prisioneiro do passado” e depois outros clássicos, muitos outros clássicos.
Foi durante o “Casablanca” que aconteceu o inevitável. A mão dele invadiu o espaço dela e tocou-lhe ao de leve a pele macia da mão. Depois agarrou-a com avidez. Era quente. A dele também. Olharam-se profundamente. Depois, ao som da música um pouco roufenha que saia algures das paredes e esquecidos do projeccionista, trocaram o primeiro beijo. Trocaram um beijo de cinema. A cara um pouco de lado, olhos fechados e a respiração suspensa. O beijo de cinema depressa se transformou num beijo arrebatado. Apaixonado. O fresco de Outubro já não o era e a sala pareceu-lhe subitamente mais pequena. Na tela o Humphrey beijou a Ingrid. Eles não viram. Os rostos afogueados, as mãos irrequietas, as bocas sôfregas. Abraçaram-se sem se importarem que os braços das cadeiras os magoassem nos braços, na barriga, nas ancas. Ela sentiu o cheiro ténue da transpiração dele. Ele sentiu a fragância a flores que emanava da pele dela. Olharam-se nos olhos e estavam tão próximos que os seus hálitos se fundiram. E essa fusão era boa e era doce. Beijaram-se novamente.
Não ficaram até ao final do filme.
Não se despediram da Ingrid e do Humphrey.
O projeccionista não os viu sair.
Havia agora mais um filme de amor a fazer. Tinham o mundo por cenário e eles já eram os actores principais.
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi