Aquele abraço durou apenas o tempo de um abraço. Mas nesse tempo coube muito mais do que um abraço onde quatro braços envolvem dois corpos. Couberam sorrisos ansiosos, esperançosos e perguntas, tantas. Couberam sentimentos que nem tínhamos sonhado que pudéssemos sentir. Coube um tempo infinito, como se tivéssemos existido sempre, sempre assim.
Depois, mais tarde, percebi que parte de mim tinha ficado ainda dentro desse abraço.
Caminhei lentamente pelas ruas da cidade adormecida e senti a tristeza invadir-me a pele, os olhos, os cabelos, todas as células do meu corpo, como se fosse tristeza líquida a entranhar-se dentro do meu corpo, avançando até ao mais profundo e misterioso da minha alma. O sol, que apenas ameaçava aparecer, estava frio. Era um sol frio numa manhã fria.
Tive saudades e uma lágrima teimosa a querer descer pela minha cara. Não deixei. Impedi-lhe o caminho mal assomou aos meus olhos. Corajosamente sorri e deixei-me levar pelos meus passos. Sem destino. Não havia para onde quisesse ir.
Mais tarde, fui despedir-me da cidade. Também para mim era hora de partir. No ar pareceu-me ainda sentir o seu cheiro doce e olhando o céu deixei-me perder na lembrança do profundo azul dos seus olhos. No chão pisado milhares e milhares de vezes vi os seus passos que o levaram para longe de mim. A cidade passou a existir porque ele existiu dentro dela.
texto inédito, cláudia moreira
imagem retirada da net
Vou partilhar alguns textos que escrevi nos ultimos meses... são todos pura ficção...
Ninguém falava de outra coisa na aldeia. Aqui e ali grupinhos murmuravam sobre o último acontecimento, como se falar alto pudesse acordar os mortos do seu sono eterno.
- A Mariana morreu! A Mariana atirou-se da ponte!
Ninguém queria acreditar que isso tivesse acontecido, ninguém conseguia compreender como tinha sido isso possível. Mas era a pura verdade. A Mariana estava morta. Tinham-na tirado do rio, mas já sem vida. O alarme foi dado de imediato por um pescador que estava por perto. Mas as águas negras do rio engoliram-na e só horas depois a conseguiram resgatar.
- Parece que o marido a apanhou com outro…
- Já se esperava isso há muito…
Há muito tempo que se falava dos amores de Mariana e António. O assunto era discutido na mercearia logo de manhã cedo, na taberna da Ti Maria ao fim da tarde, no talho do Sr. José, os cantoneiros que limpam as beiras de estrada, todos falavam do que se passava.
- A mariana e António eram amantes…
- Não deve ser verdade mulher.
- Diz quem já os viu.
Viam-nos passar muito sérios, como se irem sérios os fizesse menos culpados. Encontravam-se longe da terra. Mas dizem que o diabo é tendeiro e que não há nada que não se saiba, por isso houve quem os visse. Entraram os dois no comboio, cada um numa carruagem diferente. No destino abraçaram-se, pensando que ninguém os via. Mas nesse dia a Sra. Rita tinha ido fazer um exame ao coração que só faziam no porto e tambem seguia no mesmo comboio. E logo quem os foi ver, a Sra. Rita! A maior coscuvilheira da terra!
- Pois, é Manuel. Saíram do comboio, cada um da sua carruagem e abraçaram-se e beijaram-se na boca! Eu ate escondi os olhos. Uma vergonha Manuel! Uma vergonha é o que é!
- Viste mal mulher…
Mas não tinha visto. Há muito que eles faziam isso mesmo, para poderem estar juntos uns minutos. Às vezes uma escassa meia hora depois de uma viagem de uma hora! Metiam-se no comboio na terra e iam até ao Porto. Lá andavam de mão dada ou beijavam-se na boca. Nunca passou disso. Ninguém os viu entrar num hotel, ou fazer figuras tristes na via pública, mas o povo não perdoa e a um conto acrescentaram um ponto e em breve passavam as tardes em hotéis e residenciais.
- Vi! E estavam a entrar para uma residencial! Pobre Lúcia. Se ela soube a prenda que tem em casa. E a outra desavergonhada? A meter-se assim com um homem casado?
- Desavergonhada? Mas de quem falas tu mulher?
- Da mariana! Pois de quem mais haveria de ser?
- Então ele não é desavergonhado mas ela é?
- É mulher e tem que se dar ao respeito.
E com esta frase em tom peremptório, a Sra. Rita terminou a conversa. Esta afirmação era a mesma que corria na boca de muitas outras pessoas na aldeia. A mariana por ser mulher tinha que se dar ao respeito. O António por ser homem tinha direito há suas fraquezas. Mundo injusto este em que vivemos em que os homens a e as mulheres não são julgados pelas mesma leis. As leis dos homens são feitas à sua imagem e semelhante: imperfeitas
Mariana avançou pela ponte até meio. Parou a menos de dez centímetros da grade e olhou lá para baixo. O rio ali era bastante profundo devido a andarem a retirar areia. Aqui e ali uma rocha mostrava a sua presença nas maré baixa, mas naquele dia não se via nenhuma. As águas de invernos avançavam furiosas até ao mar ali já próximo levando consigo lixo das margens e ramagens caídas das árvores. O céu negro ameaçava chuva. Era terça-feira e deveria estar a trabalhar. Saíra um pouco mais cedo com o pretexto de ter de ir a uma consulta. Era agora o grande momento. Já não aguentava mais a vergonha. O marido vira a carta que escrevera e não enviara a António. Tinha chegado de surpresa e o sorriso morrera-lhe nos lábios com a sua reacção. Mariana não conseguiu sequer reagir, quanto mais sorrir. Nas mãos uma carta velha, muitas vezes relida de António. Na mesa, uma outra acabada de escrever para António, onde lhe abria a alma mais uma vez. Já não a conseguiu apanhar. Guilherme acompanhara o movimento dos olhos dela e apanhara a carta primeiro. Primeiro com surpresa e depois com desgosto olhara-a. Chegou-se a ela e olhou-a nos olhos. Mariana sempre doce não fez menção de fugir. Fez mal. Uma estalada fê-la cair redonda no chão.
- Vai-te daqui. Amanhã à noite já não voltes.
Disse isto como quem cospe.
- Guilherme….
- Vai-te maldita.
Mariana soube então que só haveria uma solução. Acordou cedo e deitou-se junto ao filho que dormia. Tomou banho e deu o pequeno-almoço ao pequeno Miguel. Levou o menino à ama e despediu-se dele com um beijo. Nunca sorriu. Depois saiu para a fábrica, como saia todos os dias. Levava um lenço na cabeça para que ao andar de bicicleta o cabelo não andasse todo no ar. Os lábios cerrados, os olhos escuros e húmidos. Quem lhe perguntou ficou a saber que ela tinha passado a noite com insónias. Quem não lhe perguntou achou que estava cansada, o que era natural. Mariana trabalhava muito, na fábrica e no resto do tempo na pequena horta da casa. No intervalo pediu licença para sair e voltar apenas à tarde. Em vez de ir ao centro de saúde avançou até à ponte. Continuava a ver lá em baixo as águas turvas. Seria rápido, tinha a certeza. Olhou em frente e pode ver o estuário do rio, as gaivotas, os barcos no estaleiro. Pode ver os pescadores de cana na margem, pode ver os salgueiros a deixar tombar os seus ramos nas águas. Pode ver o farol ao longe na sua roupagem vermelha e branca. Pensou no Miguel, que estava agora na ama a comer a papa muito tranquilo. Sorriu ligeiramente ao evocar a imagem do filho. Pensou no Guilherme e deu-lhe razão nas palavras que dissera. Pensou no António e na última vez que se viram. António dissera-lhe que a mulher estava desconfiada e por isso não queria mais encontrar-se com ela. Depois de lhe prometer tanto, de ter arriscado tanto. A vida é assim, estranha. Mariana sabia que não poderia jamais ter o perdão de Guilherme, mas também sabia que António não gostava dela o suficiente para deixar a mulher. A burrice tinha sido sua, apenas sua.
Olhou mais uma vez o farol, pensou no Miguel, encostou-se à grande da ponte e deixou-se cair. Nos escassos segundos que a separaram do tabuleiro da ponte de da água sentiu o alívio da morte por antecipação e sorriu.
Fim
imagem retirada da net
... de escrever aqui ao lado
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi