Falar sobre tudo e mais alguma coisa

Terça-feira, 20 de Setembro de 2011
Carta aberta aos leitores deste blog!

 

 

 

imagem retirada da net

 

 

 

Caríssimos amigos, leitores assíduos, menos assíduos, seguidores e transeuntes deste blog,

 

 

Se estiveram atentos nos últimos meses repararam que ando a publicar alguns dos contos que escrevo. Geralmente aqui no blog escrevo just for fun, mas desta vez quero fazer uma coisa um pouco mais séria e estes contos são embriões de algo maior que precisam do vosso alimento para crescer.

 

 

Ou seja, para que cresçam saudáveis precisam de opiniões positivas e/ou negativas construtivas. Precisam de leitores de ideias desempoeiradas e mentes abertas. Precisam de cada um de vocês, que eu sei, silenciosamente passam por aqui quando publico!

 

 

Agradeço desde já o tempo dispensado e não o considerem perdido. É uma grande ajuda a uma modesta candidata a escritora e deve contar como boa acção perante o nosso todo-poderoso! :)

 

Atentamente,

 

 

Cláudia Moreira :)

 

Adenda:

 

Para descobrir rápidamente os contos basta escolher a tag "contos" na barra lateral do blog! :)



publicado por magnolia às 17:55
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Sexta-feira, 16 de Setembro de 2011
Leonor ou um caminho sem regresso

 

 

 

(...)

 

Cá em baixo outra vez, voltei a entrar na cozinha. Foi ali a primeira vez. Foi ali a primeira vez que a sua mão enorme, a pesar uma tonelada, me atingiu o rosto magro e indefeso e me deixou magoada e surpreendida. Tão surpreendida que nem sequer ergui as mãos para me defender. Tinha casado há três meses. Tinha o coração ainda cheio de ilusões. Bateu-me com as costas da mão num movimento rápido, doloroso, simples. Depois virou-me as costas uns segundos. Quando me olhou novamente pediu-me perdão. Os olhos injectados de sangue. Pensei que eram lágrimas. Inocente. Tão inocente que eu era naquela altura... Quando me tentou beijar, senti o seu hálito alcoolizado. Então percebi que estava bêbado. Afastei-o com brusquidão e ele saiu da cozinha, cambaleando, murmurando palavras que não entendi. Tudo isto demorou um minuto. Passei o resto do dia a chorar, inconsolável. Era sábado.

 

À noite quis fazer amor comigo. O meu rosto estava inchado e dorido. Fizemos amor entre lágrimas e pedidos de perdão. E acusações. Disse-me que a culpa era minha, por ser demasiado bela. Não o questionei e ele reiterou as juras de amor eterno.

 

Uma semana depois eu estava a cozinhar um frango assado no forno do fogão de lenha, prato que ele adorava e que eu adorava cozinhar para lhe agradar, quando ouvi o ranger do pequeno portão ao abrir. Ao contrário do costume ele não veio logo até mim. Demorou-se na horta e estranhei. Fui até à porta com um sorriso imenso na boca para logo o apagar. O meu marido estava desgrenhado, sujo e bêbado. Tentei retroceder silenciosamente para que não me visse, mas não consegui. Entrou na cozinha e sem razão chamou-me nomes ordinários e riu-se. Um riso escarninho que não lhe conhecia. Chamou-me para ao pé dele. Agarrou-me num dos braços com força e atirou-me para uma cadeira com violência. Depois aproximou-se novamente e puxou-me pelo braço com tanta força que achei que mo tinha partido. Percebi que me ia bater novamente e tentei fugir. Não consegui. Implorei que não me batesse mas em vão. Senti os estalos na cara. Um. Dois. Três. O sangue a escorrer-me pelo lábio. À visão do sangue afastou-se com brusquidão. Deixou-me cair, tombada no chão e saiu porta fora. Só voltou de madrugada. Entrou cambaleando no quarto. Eu fechei os olhos com força e fingi que dormia. Fingi que dormia. Não suportava a ideia de que me tocasse depois de tudo. Deitou-se ao meu lado, de roupa a cheirar a fumo, a terra e a vinho e adormeceu. Depois eu não pude dormir mais um segundo que fosse e ele dormiu um sono agitado e mal cheiroso. A meio da noite vomitou e eu, enojada, tive que limpar. Lá fora o vento de Inverno uivava e a mim só me apetecia morrer.

 

De manhã mais uma vez só a sua boca foi capaz de me pedir perdão, o coração não. Sei-o agora sem qualquer margem para dúvidas. Não falei. Não falamos. O pedido de perdão ficou por ali, preso entre as pedras da casa, pendurado nas árvores e nas videiras.

 

Depois desse dia outros vieram, uns melhores outros piores. Nalguns ele bebia, noutros nem por isso. Noutros batia-me, noutros nem por isso. Os ciúmes toldavam-lhe a visão e a compreensão. Eu era ao mesmo tempo a mulher ideal, bonita e sincera e a pior mulher do mundo, infiel e mentirosa. Amava-me e batia-me. Amava-me e maltratava-me. Amava-me e insultava-me. Amava-me e odiava-me. Ou odiava todas as mulheres. Nunca cheguei a uma resposta concreta, nem me importava porque a dor era demasiado grande.

 

Nos dias bons, depois de regar a horta ao final da tarde, vinha sentar-se ao pé de mim enquanto eu descascava os legumes para a sopa. Falava do preço das hortaliças no mercado, das enxadas novas do vizinho, mostrava-me mais um corte que tivesse feito nesse dia. Depois pedia-me que lhe desse uma bacia com água quente para se lavar. Mais tarde, já depois do jantar, ficávamos a conversar sobre o futuro. A mim parecia-me um absurdo, ele falava com o entusiasmo de um cego que não sabe que é cego. Nós nunca seriamos felizes.

Nos dias maus entrava em casa tarde e a más horas, batia com as portas e largava as botas cheias de bosta de vaca no quarto. Eu sabia que tinha estado na taberna e que não tinha saído de lá sem beber pelo menos quatro ou cinco ou dez copos de vinho. Tresandava. Eu fingia dormir, quase sem respirar, muita quieta no meu lado da cama, a tentar não ser notada. Um som a mais e seria mais uma noite de pancada e de lágrimas e de tristeza. Por vezes acontecia de se deitar, vestido por cima da colcha de trapos feitas pelas minhas mãos em noites de rapariga solteira em que não me autorizavam sair, e adormecer sem ter tempo de me acordar com roncos e palavrões. Noutras vezes, naquelas em que a sorte me abandonava, ele chamava por mim aos berros e não desistia enquanto não olhava para ele nos olhos, fingindo estar estremunhada, acabada de acordar. Era certo que na manhã seguinte teria algumas novas nódoas negras.

 

Foi numa noite assim, dois anos depois de nos termos casado, que tomei a maior decisão da minha vida. Era sexta-feira. Lembro-me sem qualquer dúvida porque tinha ido à feira comprar uns metros de tecido para um vestido. Queria fazer um vestido novo, folgado, uma vez que em breve aqueles que usava iriam deixar de me servir. Estava grávida. Não tinha ficado radiante, mas pensei que talvez um filho servisse para aplacar as dúvidas e a fúria do meu marido. Quando cheguei a casa, contrariamente ao costume, ele já estava em casa. Quis saber de onde vinha. Eu, apesar de tudo estava feliz, e de sorriso nos lábios mostrei-lhe o tecido. Depois, ingenuamente, perguntei-lhe porque estava em casa aquela hora de tão pouco costume. Estava à minha espera, disse-me ele. Estava à espera da galdéria que bastou o marido voltar as costas para sair de casa e ir ter com outros homens. Disse-me que me tinha visto na feira a falar com um homem. Quis protestar mas não pude sequer que passasse do pensamento. Não pude exprimir a surpresa que me ia na alma. Ainda eu estava a fazer o trejeito de espanto nos lábios quando senti a sua mão calejada na minha cara. Não tinha sido o primeiro, mas talvez tivesse sido o mais doloroso. Estava feliz naquele dia e nessa felicidade não tinha cabimento um estalo, a dor desse estalo, a injustiça desse estalo, a humilhação desse estalo. A desilusão, nesse dia não tinha cabimento a desilusão de perceber que nada faria mudar a maneira de ser daquele homem que anos antes tinha habitado os meus sonhos mais românticos. Na barriga carregava um fruto desse sonho antigo.

 

Caí no chão desamparada, sem que as minhas mãos fossem capazes de se agarrarem a alguma coisa que me ajudasse a amparar a queda. Olhei-o ainda sem perceber e vi os seus olhos raiados a sangue, a sua cara manchada, as roupas sujas do trabalho desalinhadas, o cabelo grande, sujo e despenteado. Os dentes enegrecidos pelo álcool e pelo tabaco, dentro de uma boca que era uma abertura no rosto, um esgar. Depois, tão rápido como nunca julguei ser possível, baixou-se para me agarrar e levantar, mas só para me voltar a bater. Voltei a cair no chão. As lágrimas a correrem-me pela cara. A dor latejante na cara. A dor lancinante no peito. No chão, indefesa, senti as suas botas de trabalho darem-me um pontapé sem pena. Senti algo a estalar dentro de mim. Eram as costelas. Depois outro e outro. Depois puxou-me pelos cabelos para que ficasse mais ao nível dos olhos dele. Queria chamar-me puta, vaca, galdéria e outras palavras que já não me lembro, que afinal queriam dizer todas a mesma coisa, mas queria dizê-las dentro dos meus olhos. Dentro da minha alma. Cuspia as palavras. Salivava-se. Mal conseguia ouvir o que me dizia porque as minhas mãos estavam sempre a fugir para a cabeça, protegendo-me ou apenas tentado fazê-lo, desesperadamente.

 

Durante uma hora ouvi insultos, senti pontapés, puxões de cabelo, estalos. No fim dessa hora tinha a roupa rasgada, a boca ensanguentada, um olho que já não via coberto por um enorme pedaço de carne tumefacta. Doía-me o peito violentamente e mal podia respirar. Caída no chão sem forças para me levantar, já nem fui capaz de chorar.

 

Ele, raivoso de mim, saiu porta fora, batendo em todas as esquinas, vociferando impropérios. Ouvi ao longe o portão abrir mas não o ouvi fechar. 

 

Não sei que horas seriam, nem quanto tempo teria passado, mas uma vizinha estava ao meu lado tentado acordar-me quando abri os olhos. Eu lembro-me claramente que não fui capaz de me mover nem de falar. Pouco depois a sirene de uma ambulância tocou mesmo à minha porta e senti-me a ser levada para dentro dela. Depois a escuridão.

 

Dias mais tarde, ele veio ver-me. Estava de banho tomado, roupa limpa mas por passar a ferro e barba feita, mas no rosto trazia a marca de noites em claro e da má vida dos últimos anos. Cheirava a álcool. Talvez trouxesse também a marca dos remorsos impressa na pele. Pediu-me perdão. Não lhe respondi. O meu olho esquerdo ainda não abria o suficiente para o ver. Também não o queria ver. As três costelas partidas e o braço desmanchado não me davam grande vontade de o ver. Virei-lhe o rosto a custo para que não me visse os olhos. Não insistiu.

 

Mais tarde, quando o médico me deu alta veio buscar-me. Chamou um táxi. Pela janela vi desaparecer a cidade e aparecer a aldeia. Os campos cultivados e as pequenas hortas. As casas de pedra e os castanheiros frondosos. Quando entramos na rua da casa que julguei sempre ser o meu lar, estremeci. Entramos no pátio e deixei-me ficar para trás. Andei devagar. Não queria entrar novamente naquela casa onde julgara estar a felicidade mas que ao invés disso tinha encontrado a violência e a tragédia. Já não tinha filho nenhum nas entranhas. Não lhe falei uma única vez. Era de noite quando chegamos.

 

No dia seguinte, mal ele saiu para o campo, tomei banho, vesti a minha melhor saia e uma blusa branca de seda. Vesti um casaco preto de lã mais grossinha porque estava frio. Peguei na carteira de tiracolo e numa pequena mala onde tinha posto duas saias e duas blusas, alguma roupa interior, pouca e o álbum de casamento. Não olhei uma única vez para trás antes de fechar a porta. O portão rangeu nos gonzos como sempre rangia. Fechei-o e comecei a andar sem destino. Ainda não sabia para onde iria, só não podia ficar ali.

 

Passaram-se anos. Muitos anos. Nunca dei uma explicação. Ele nunca ma pediu. Os meus pais nunca me pediram para voltar para casa. Os vizinhos sabiam o porquê do meu desaparecimento repentino. Eu nunca quis voltar à terra que me viu nascer, crescer e casar. O medo era uma coisa que se colava à pele e à carne.

 

Mas agora ele estava morto. Há muitos anos que estava morto e não me podia fazer mal. Doença prolongada, tinham-me dito em conversa que fora vítima de doença prolongada. Eu sabia que tinha sido uma cirrose. Que mais poderia ter sido?

 

Sai a correr da cozinha para a luz do dia e deixei-me cair, quase desfalecida nas escadas sujas. Tentei respirar normalmente mas senti que não estava a conseguir. Era uma bola enorme na garganta feita de dor, de angústia e de tristeza que me impedia de respirar. No peito um peso, como se tivesse costelas feitas de ferro, externo feito de ferro, pulmões feitos de ferro…apenas o coração parecia ser feito de carne e sangrava. Apesar dos trinta anos que me separavam daqueles tempos a dor era a mesma. Como se tivessem passado apenas cinco minutos. Levei a mão à boca e era como se ainda pudesse sentir a viscosidade do sangue nos meus dedos.

 

As lágrimas soltaram-se então e deixei-as correr silenciosamente pela minha cara, aterrando no meu vestido preto, deixando nele marcas redondas. Depois de uns momentos que não pude contar e nem sequer me importou contar, enxuguei as lágrimas e olhei o céu. Estava azul. O sol brilhava depois do nevoeiro da manhã. Os pássaros chilreavam e as ervas que cresciam por ali estavam verdes e frescas. As árvores com as suas folhagens densas e que não viam uma tesoura de poda há muitos anos, estavam gloriosamente altas e bonitas. A casa a cair parecia um fantasma do passado, silenciosa e quieta. Sem vida. Apesar de tudo era um lugar bonito. Poderia ter sido o meu lar, o meu refúgio, aquele lugar único no mundo onde nos sentimos em casa. Não foi. Talvez agora não importasse lamentar mais o passado. Talvez fosse hora de esquecer. Durante trinta anos tinha estado adormecido pela distância, o sentimento de raiva e de revolta. Agora já não importava que voltasse ao de cima porque aquele que causara estes sentimentos estava morto, enterrado debaixo de sete palmos de terra húmida e fria. E sozinho. Como sempre estivera em vida.

 

Devagar, levantei-me e caminhei para o portão. Tinha chorado as últimas lágrimas por ele e por mim. Não me incomodei sequer em fechar o portão. Nem sequer olhei para trás.

 

Fim

 

 

Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira

   

 

 

 

 


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publicado por magnolia às 09:16
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Quinta-feira, 15 de Setembro de 2011
Leonor ou um caminho sem regresso

 

(...)

Por um instante voltei ao passado. Voltei a ver a cozinha aquecida pela lareira crepitante, o pote de três pés em cima onde cozia a sopa. No que restava dos antigos armários agora sem portas, caídos, via-se crescer musgo e cogumelos. A janela aberta deixava entrar a vegetação rastejante. Por momentos senti o cheiro do refogado dos dias de Domingo e que ainda parecia impregnar as paredes, o chão e toda a casa. Eu estava ali em frente ao lava-loiça e usava um avental branco debruado a renda. O cabelo preso dava-me um ar antiquado, porém e apesar de há muitos anos ter cortado o cabelo, ainda era assim que me via muitas vezes.

 

Voltei ao exterior e respirei fundo.

 

Depois, subi as escadas a custo. As pernas já não queriam dobrar como antes. As escadas de pedra ladeadas por corrimões de madeira estavam a ponto de ceder debaixo das minhas mãos. O bicho da madeira tinha-as comido aos poucos durante aqueles longos anos de abandono. Lá em cima, pela janela caída, pude ver o céu azul, as árvores de sempre, apenas mais altas, mais frondosas. Encostei-me à parede suja para evitar cair. Estava nauseada, tonta. O quarto vazio cheirava a Sábados de manhã. Cheirava a lençóis lavados no tanque e a flores frescas acabadas de colher. Cheirava a promessas de uma vida longa e feliz, a dois. O ruído das folhas secas, caídas pelo chão de madeira sujo e carcomido a serem levadas pelo vento fizeram-me voltar ao presente. Um soluço estava preso na minha garganta, queria sair, mas não estava a conseguir libertar-se do meu corpo velho e mirrado.

 

Arrastei o meu corpo como pude até à sala. Por momentos os sofás de pés de madeira e almofadas com motivos florais estavam outra vez diante dos meus olhos num convite mudo. A cristaleira com o meu melhor serviço de jantar. O pano de croché na mesa de jantar feito por mim em muitas noites de espera dolorosa. As cadeiras alinhadas em volta da mesa redonda. Também vi o homem que foi meu marido durante os piores anos da minha vida. Aqueles que deveriam ter sido os melhores de todos. E agora como num passe de mágica, ali estava ele, sentado na sua poltrona de sempre, ouvindo a rádio, atento, sem se lembrar de mim, e eu ali a rondar, carente de atenção e carinho.

 

Uma vertigem fez-me cambalear e tive que me agarrar a uma das paredes húmidas e já quase sem cal. Fechei os olhos e respirei fundo.

 

Desci novamente as escadas, devagar, muito devagar. As recordações eram tantas que me pesavam como se carregasse aquela casa inteira nas costas. Doía.

 

 

continua (...)

 

Texto de ficção ecrito por Cláudia Moreira 

 

 

 

 

 

 


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publicado por magnolia às 13:40
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Terça-feira, 13 de Setembro de 2011
Leonor ou um caminho sem regresso

 

 

 

 

  

Texto inédito

Ficção

 

 

 

O silêncio da manhã preenchia a rua toda. A casa, velha, antiga, permanecia ali, quieta, onde sempre estivera. Tinha sido há trinta anos a ultima vez que os meus olhos tinham visto aquelas pedras e os meus pés tinham pisado aquele chão. Agora passados tantos anos tinha resolvido voltar, talvez para encerrar um assunto que me tinha devorado a alegria de viver durante muito tempo talvez para exorcizar os meus demónios. E eram muitos os demónios, talvez demasiados, para exorcizar.

 

O portão enferrujado não cedeu logo ao esforço do meu braço. Depois, quando se abriu, um barulho de ferro enferrujado contra ferro enferrujado fez levantar em alvoroço os pássaros que repousavam tranquilos, nos ramos das árvores, na quietude da manhã. Entrei. Pelo estreito carreiro cheio de ervas ainda molhadas do orvalho que me molharam os sapatos, cheguei ao pequeno pátio da casa. Levantei os olhos e pude ver como o tempo tinha degradado a casa. Anos de chuvas fortes e gelo tinham empenado janelas e os ventos fortes tinham partido vidros. Ou talvez tenham sido partidos por pedras lançadas por rapazotes sem mais que fazer. As madeiras das portas e janelas, das que ainda não tinham caído inertes no chão, estavam quase sem tinta, descascadas por anos e anos de abandono e intempéries. Pedaços de telhas partidas no chão já parcialmente tapadas pelas ervas que cresciam sem licença de ninguém por todo o lado. As escadas exteriores que levavam ao primeiro andar, em pedra, estavam juncadas de excrementos de pássaros que durante todos aqueles anos de abandono tinham feito os seus ninhos nos beirais da casa. O poço, no centro do pátio, mal se vislumbrava, tantas eram as heras que o cobriam. Árvores, algumas já raquíticas da falta de poda, estavam junto do que restava de um muro feito de pedras que alguém juntara com esforço e à custa de muitos calos nas mãos, esse alguém, eu. Outras não se tinham importado com a falta da mão humana e tinham crescido até se tornarem belas árvores adultas.

 

Olhei o céu. Estava azul agora que a neblina da manhã se desvanecera. O sol cobria tudo de luz. Um pássaro negro cortou o céu azul ao meio. Um melro talvez. Ao longe ouvia-se a enxada a entrar na terra e pude imaginar alguém curvado sobre a terra, preparando-a para receber as cenouras, as couves, os tomates e outros legumes da horta.

 

Meia dúzia de passos foram suficientes para chegar perto da porta de entrada. Estava fechada. Também ali as ervas tinham crescido sem licença, aproveitando todas as frestas na madeira, ocupando todos os espaços vagos entre as pedras da parede. Uma lagartixa afastou-se a correr, abanando o rabo, com medo dos meus pés, chateada porque lhe roubei a tranquilidade da sesta da manhã. Pus a mão na porta e empurrei. Com força. O som da madeira a estalar e uma chuva de pequeninos pedacinhos de madeira a caírem no chão. Mais um bocadinho de esforço e a porta cederia. E mais um bocadinho de força e a porta cedeu. Finalmente abri a porta o suficiente para passar. Um cheiro de terra invadiu as minhas narinas. A aragem repentina provocada pela abertura da porta causou um restolhar de folhas secas no chão da sala. Ali era a nossa antiga cozinha. Estava quase vazia. As paredes negras de humidade acumulada ao longo de trinta anos de abandono. As janelas sem vidros. Numa delas uma cortina esquecida. Um farrapo apenas. As ervas daninhas a cresceram pelo meio da madeira podre. A lareira vazia ainda negra de fuligem de tantas noites a conter labaredas. Labaredas que aqueceram as nossas noites durante tantos Invernos e nos aqueceram comida em tantas refeições.

 

 Continua (...)

 

 

Cláudia Moreira

 

 


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publicado por magnolia às 23:44
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Quinta-feira, 8 de Setembro de 2011
Matilde ou Para onde me leva esta Caminho?

 

 

(...)

Algum tempo depois do divórcio ter acontecido tinha conhecido uma pessoa, um homem dono de uns belos olhos azuis. E no momento em que viu esse homem de olhos azuis, o homem sem rosto com quem sonhara antes materializara-se. E esse homem estava ali em cima também, na festa. Pertenciam ambos ao mesmo grupo de amigos e um dia os seus olhos tinham-se encontrado. Depois desse olhar Matilde nunca mais foi a mesma pessoa. Esse olhar tinha ficado cravado na sua memória. E em nenhum dia depois desse dia, deixara de ver essa mesma cara até ao dia presente. Infelizmente essa pessoa não partilhava do seu sentimento. Esse olhar tinha sido como tantos olhares. Como teria olhado para uma árvore, para um prédio ou para uma ponte. Nele não despertara o que despertara nela. Apesar de não ser mais novo do que ela, ainda não vivera muito do que ela já tinha vivido. Ela já tinha casado e ele não. Ela já tinha tido filha sua filha e ele não tinha nenhum. Ela já passara pelo divórcio e ele nem sabia o que era o casamento. Estavam a muitos quilómetros de distância um do outro. Fisicamente eram quase vizinhos, emocionalmente estavam em lados opostos do universo. Matilde sabia que mesmo que um dia ele a olhasse com mais atenção não seria possível uma relação. E isso magoava ainda mais. Matilde sofria com a injustiça de ter sido atingida pelo olhar de um homem que não poderia ser seu. Perguntava ao universo mas o universo não tinha respostas. Julgava ela que não deveria ser permitido gostar de quem não gosta de nós. Mas era. Prova evidente era este seu gostar de um homem que a via transparente.

 

Matilde tinha completado trinta e cinco anos no Verão. Se não estivesse com a sua filha ninguém lhos daria. Era uma mulher de cabeleira negra e que de muito farta e ondulante se fazia notar onde quer que estivesse. Aos trinta e cinco poucos cabelos brancos manchavam o negro asa de corvo. Do pai herdara os olhos azuis e as pestanas fartas. Da mãe, o peito generoso! No conjunto, Matilde não se podia queixar. Aos trinta e cinco anos era uma bela mulher. Dona de umas pernas bonitas, que quase sempre usava escondidas, caminhava segura pelas ruas da velha cidade onde vivia. Ainda havia quem virasse a cara para a ver passar. No entanto, dentro de si, vivia a escuridão e no espelho via reflectida uma mulher desinteressante e gasta. Como poderia sequer ter a ilusão de que agradaria ao homem que retivera no olhar? Velha e gasta, de alma puída e de coração partido em pedaços? Não tinha a ilusão, já não a tinha…

 

Era tarde e a chuva não fazia tenções de parar. Matilde saiu do aconchego das árvores e caminhou em direcção a casa. As ruas vazias da velha cidade devolviam o som dos saltos dos sapatos. Um gato atravessou-se no seu caminho. A luz de um candeeiro apagou-se à sua passagem. Seria um sinal? Estava cansada e os olhos cheios de lágrimas mal a deixavam ver por onde ia. Continuou devagar. A sua casa estava vazia e continuaria vazia. A sua filha estava com o pai nesse dia. As novas rotinas impostas diziam que de quinze em quinze dias a filha iria passar o fim-de-semana com o pai. Nesses dias era pior. Matilde andava pela casa sem despir a t-shirt velha com que dormia. Comia cereais e lia sem parar. Por vezes, levantava os olhos do livro e via pendurada nas paredes a solidão. Outras vezes ia dar com ela dentro da gaveta da roupa interior onde agora repousava apenas a sua. De noite adormecia a chorar e de manhã apenas o seu lado da cama estava desfeito. Do outro lado nem uma ruga. Matilde ia então colocar-se em frente ao espelho e chorava outra vez ao ver o seu rosto coberto de marcas de choro nocturno.  Depois lavava a cara e iniciava o seu já gasto discurso. Dizia a si própria que estava bem melhor assim, sozinha. Dizia que a liberdade ganha com o divórcio era o melhor que poderia desejar. Viveria assim sem amarras para o resto da vida e poderia fazer apenas o que lhe desse na gana. Em voz alta dizia que o homem dos olhos azuis não era de todo uma boa escolha. Que o seu coração errara. Matilde esforçava-se por pensar com racionalidade. Ela sabia que a sua vida assim sozinha era bem mais tranquila. Também pensava na parte financeira. Matilde ganhava rés-vés o que precisava para se sustentar, mas não teria como embarcar nos planos de pessoas que não têm responsabilidades. Como poderia achar que uma relação agora faria sentido sem ter problemas de logística?  E quando o seu par quisesse ir de férias? Ou jantar fora? Teria que ser a desmancha-prazeres? Matilde rematava o assunto com a parte mais complexa. Não queria mais filhos. Não poderia estar com alguém que ainda não os tivesse. Seria isto justo para ela? A escolher ter que escolher em função de quem já tivesse filhos ou não, de quem já tivesse sido casado ou não, de quem tivesse dinheiro ou não? E o amor? E a química? E as afinidades?

 

Matilde chegou a casa e fechou a porta atrás de si. Lá dentro, o silêncio. Caminhou até ao seu quarto e em frente ao espelho de corpo inteiro tirou a roupa molhada. Olhou-se ao espelho, nua, e viu uma mulher comum. Tocou com a mão no peito e lembrou-se de ter feito o mesmo gesto aos dezoito anos. Tinha sido na noite depois de ter feito amor a primeira vez com o homem que fora seu marido. Nessa altura tinha a vida toda pela frente. E todos os sonhos do mundo cabiam dentro de si. Matilde pensou que seria bom voltar aos dezoito anos e não apenas pelo corpo mais firme que agora já não tinha. Matilde queria ter a oportunidade de escolher novamente, melhor. Era um exercício de pensamento inútil, bem o sabia. A vida é um caminho de ida, apenas. Não se pode voltar atrás, às encruzilhadas, para seguir por um caminho diferente do escolhido antes. Matilde sabia-o, mas não deixava de sentir a frustração causada por essa verdade.

 

Baixou os braços e arrastou-se até à cama. Debaixo dos lençóis frios, nua, deixou que as ultimas lágrimas caíssem na almofada. Pensou novamente no homem que amava e que não a amava. Pensou no abraço que o viu dar a outra mulher e sentiu de novo a mesma dor que sentira e a pequena réstia de esperança que por vezes ressurgia, a abandoná-la de novo. Pensou na sua filha. Pensou que talvez essa dor amanhã estivesse menos dor, se tivesse sorte. Pensou no sorriso bonito da sua filha. Pensou que talvez no dia de amanhã fosse sentir o mar de Outubro nos pés. Pensou que talvez no dia de amanhã o sol brilhasse e lhe desse a força que precisava. Pensou que o amanhã seria mais um dia, mais um passo no longo e misterioso caminho da vida. Ninguém sabe nunca para onde nos leva este caminho.

 

Aos poucos o sono foi chegando e Matilde deixou-se envolver em sonhos. De manhã a chuva já não caía e o sol entrava pela janela que no meio das lágrimas se tinha esquecido de fechar.

 

Fim

Texto de ficção inédito escrito por Cláudia Moreira 

 

 

 



publicado por magnolia às 09:18
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Quarta-feira, 7 de Setembro de 2011
Matilde ou Para onde me leva esta caminho?

imagem retirada da net

 

 

 (...)

Agora o tempo passara e as feridas pareciam estar curadas. Já não chorava todas as noites na almofada por não ter sido capaz de manter o casamento. Já não acordava sufocada de lágrimas por ter sonhado com o ex marido. Já não sentia quase nada. Ficara um vazio nos dias de Matilde. E nas noites. Nas noites a solidão era mais intensa. Brilhava no escuro e não a deixava dormir. Sentia o vazio no outro lado na cama e na pele a ausência de um carinho. A filha dormia no quarto ao lado e ela sabia que por ela faria tudo, até mesmo abdicar de uma nova companhia, mas também gostaria de ser ainda feliz. Seria correcto ter de novo alguém? Trazer esse alguém para o lar da sua filha? Um desconhecido? Poderia obrigar a sua filha a suportar essa presença? Seria justo para ela? E para si? Seria justo para Matilde abdicar do amor para não submeter a filha a essa presença? Não sabia. Matilde não sabia, por mais que pensasse.

 

Mesmo assim sonhava. Matilde sonhava. Sonhava com uma nova pessoa na sua vida. Um novo amor. Nos seus sonhos essa pessoa não tinha rosto, mas tinha um corpo e mãos e essas mãos tinham dedos que lhe acariciavam de vez em quando a pele do rosto. Imaginava então que os braços desse corpo a abraçavam por trás enquanto cozinhava e Matilde fechava os olhos, deliciada, enquanto lavava os legumes para a sopa. Um sorriso desenhava-se então nos seus lábios por breves instantes. Se se esforçasse um pouco até podia sentir o coração desse corpo a bater nas suas costas no meio desse abraço. Da boca dessa pessoa saiam palavras de amor e sorrisos. E beijos. Sentia falta dos beijos. E da intimidade dos beijos.

 

Matilde não pensava em paixão, mas pensava em amor. Recusava-se a acreditar que aos trinta e cinco anos era o fim do amor na sua vida. Quantos mais anos viveria ainda? Trinta? Quarenta? Seriam todos vazios de sentimentos? Um nó apertava-lhe o peito. A alma, se a tivermos. Até a sua filha em breve partiria rumo à sua própria vida e ela ficaria sozinha. Como seria depois viver numa casa silenciosa? Vazia? Nessa altura seria tarde demais para remendar o buraco causado pela falta de amor. Matilde estava convencida disso. O amor pode ser encontrado em qualquer altura da vida, diziam-lhe. Mas Matilde tinha receio que fossem apenas palavras de consolo, puramente de consolo. Duvidava.

 

A chuva continuava a cair. O corpo de Matilde tremia, mas ela julgava que era da tristeza que sentia. Matilde parecia não sentir a chuva que lhe molhava o cabelo, a cara e lhe colava a roupa ao corpo. De onde estava podia ver a janela iluminada do apartamento onde a festa continuava a decorrer. Não deveria ter aceite o convite para a festa, mas aceitara. Precisava de sair, conhecer novas pessoas. Por vezes saia, mas nunca saia do seu perímetro de conforto. Convivia com as mesmas pessoas, frequentava os mesmos lugares. Matilde já não sabia como socializar e muito menos com o sexo oposto. Já não sabia dançar a dança que dançam os que se querem apaixonar. Com o tempo Matilde tinha esquecido como se fazia.

 

(...)

Ficção

Cláudia Moreira



publicado por magnolia às 09:25
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Sexta-feira, 2 de Setembro de 2011
Matilde ou Para onde me leva este Caminho?

imagem retirada da net

 

 

Depois de descer os oito andares que a separavam daquela sala, Matilde chegou à rua. Uma chuva miúda caia do céu molhando a calçada. Era princípio de Outubro e ar tinha o cheiro da terra molhada. Ao lado havia um jardim, pequeno, mas cheio de árvores altas e frondosas. Das suas copas caiam folhas que atapetavam o chão. Matilde refugiou-se na obscuridade do jardim. Não queria ser vista. O nó que trazia na garganta desatou-se e soltou o manancial de lágrimas salgadas que se misturavam agora com a chuva. Era tarde e sentia-se exausta. Quase a quebrar. A quebrar.

 

Na cabeça, muitas ideias que se recusavam a partir. Matilde sentia-se terrivelmente sozinha e abandonada. O divórcio não tinha sido apenas libertação. Tinha sido muito mais que isso. Com o divórcio tinha vindo a solidão e de mão dada com ela a tristeza profunda. Depois desse dia, desencadeara-se uma das mais amargas fases da sua vida. Matilde sabia que não seria fácil, mas não sabia até que ponto seria difícil…

 

Matilde não tinha podido ficar casada. O sonho de menina transformara-se num pesadelo e depois de alguns anos tinha sido obrigada a abdicar daquele casamento com o homem que amara tanto. Aos poucos o amor transformara-se em algo parecido com ódio. A filha nascera ainda do amor. Mais tarde, passara noites em claro com ela ao colo, mas as lágrimas que vertia eram por causa daquele homem ciumento que não a respeitava. Um dia a decisão estava tomada por si só. E era irreversível. Não havia outro caminho a tomar. Mas o caminho do divórcio é duro e fere. E as feridas são difíceis de sarar. Matilde tinha levado quase um ano até tomar a decisão definitiva. Até ali mil perguntas tinham andando às voltas no seu cérebro. Queria muito dizer ao marido o que lhe ia na alma. Por vezes chegava mesmo a articular as primeiras palavras da frase que a levaria a dizer o que pensava. Depois calava-se com receio de não ser o mais acertado. A filha, pequena ainda, não fazia ideia nenhuma do sofrimento da mãe e adorava o pai. Seria certo roubar-lhe o convívio diário com o pai? Por sua causa? Como poderia um dia justificar essa sua atitude perante a filha? Ela entenderia? Perdoar-lhe-ia? As dúvidas sufocavam-na e não a deixavam dormir de noite. Passava os dias com olheiras profundas e o rosto pálido de não descansar. Ia sentar-se na cama da filha a vê-la dormir e a questionar-se sobre o que fazer. Por vezes tomava a decisão, mas com a luz da manhã chegavam novamente as dúvidas.  

 

(...)

ficção

Cláudia Moreira



publicado por magnolia às 14:56
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Quinta-feira, 1 de Setembro de 2011
Matilde ou para onde nos leva este caminho?

 

imagem retirada da internet

 

 

A primeira coisa que sentiu foi algo a partir, como um vidro a cair no chão. Depois, cada pedaço afiado do coração partido entrou na carne do seu peito e a dor espalhou-se rapidamente pelo resto do corpo.

 

Eles continuavam abraçados. De onde estava podia perfeitamente ver a forma íntima como ele a abraçava, rendido, em busca de protecção. Os braços dele em volta dos braços dela, o rosto dele no ombro dela, enterrado nos seus cabelos loiros. Se se esforçasse um pouco, ela poderia perfeitamente imaginar que ele estaria a apreciar o cheiro a camomila do champô dela e a sentir na pele do rosto a maciez dos seus fios dourados.

 

O abraço demorou um tempo infinito. E durante todo esse tempo as lascas afiadas foram-se enterrando mais e mais fundo em cada músculo, nos pulmões, no diafragma e por fim raspavam-lhe já o esterno e as costelas. Se Matilde continuasse ali a olhar, em breve as pontas afiadas do coração partido furariam a pele e ficariam à vista. Não seria bonito de se ver.

 

Gostava dele. Gostava muito dele. Matilde fechou os olhos e mordeu o lábio inferior. Recolheu a sua mente até ao mais profundo de si e tentou não chorar. Não podia chorar ali em frente ao homem que lhe enchia os pensamentos de dia e os sonhos de noite. Desejou poder derreter e fundir-se com a terra, desaparecer no solo para sempre. Em vez disso, sentia cada célula do seu corpo pulsar ao ritmo do seu coração.       

 

Matilde fez um esforço para abrir os olhos e enfrentar a realidade. Afinal o tempo tinha sido misericordioso com ela e não estava estagnado e eles já não estavam no seu campo de visão. Aproveitou o momento para se levantar e sair. Precisava de ar. A sala estava cheia de gente e não foi fácil desviar-se dos grupos animados e barulhentos que conversavam e riam. As conversas misturavam-se com o fumo dos cigarros. As mãos seguravam copos cheios de bebidas coloridas. A festa estava, talvez, no seu auge. Alguns amigos olharam-na como se estivesse doente, mas Matilde não se deteve a explicar. Chegou à porta da rua com as pernas a tremer, as mãos não queriam obedecer e só a custo a conseguiu abrir. Depois e só já no elevador se permitiu respirar. No espelho que cobria toda uma das paredes do elevador viu reflectida uma mulher profundamente magoada. Desejou não ser essa mulher.

 

(...)

texto de ficção

cláudia moreira



publicado por magnolia às 14:46
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Domingo, 17 de Julho de 2011
Matilde

ou

 

Para onde nos leva este caminho?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A primeira coisa que sentiu foi algo a partir, como um vidro a cair no chão. Depois, cada pedaço afiado do coração partido entrou na carne do seu peito e a dor espalhou-se rapidamente pelo resto do corpo.

 

Eles continuavam abraçados. De onde estava podia perfeitamente ver a forma íntima como ele a abraçava, rendido, em busca de protecção. Os braços dele em volta dos braços dela, o rosto dele no ombro dela, enterrado nos seus cabelos loiros. Se se esforçasse um pouco, ela poderia perfeitamente imaginar que ele estaria a apreciar o cheiro a camomila do champô dela e a sentir na pele do rosto a maciez dos seus fios dourados.

 

O abraço demorou um tempo infinito. E durante todo esse tempo as lascas afiadas foram-se enterrando mais e mais fundo em cada músculo, nos pulmões, no diafragma e por fim raspavam-lhe já o esterno e as costelas. Se Matilde continuasse ali a olhar, em breve as pontas afiadas do coração partido furariam a pele e ficariam à vista. Não seria bonito de se ver.

 

Gostava dele. Gostava muito dele. Matilde fechou os olhos e mordeu o lábio inferior. Recolheu a sua mente até ao mais profundo de si e tentou não chorar. Não podia chorar ali em frente ao homem que lhe enchia os pensamentos de dia e os sonhos de noite. Desejou poder derreter e fundir-se com a terra, desaparecer no solo para sempre. Em vez disso, sentia cada célula do seu corpo pulsar ao ritmo do seu coração.       

 

Matilde fez um esforço para abrir os olhos e enfrentar a realidade. Afinal o tempo tinha sido misericordioso com ela e não estava estagnado e eles já não estavam no seu campo de visão. Aproveitou o momento para se levantar e sair. Precisava de ar. A sala estava cheia de gente e não foi fácil desviar-se dos grupos animados e barulhentos que conversavam e riam. As conversas misturavam-se com o fumo dos cigarros. As mãos seguravam copos cheios de bebidas coloridas. A festa estava, talvez, no seu auge. Alguns amigos olharam-na como se estivesse doente, mas Matilde não se deteve a explicar. Chegou à porta da rua com as pernas a tremer, as mãos não queriam obedecer e só a custo a conseguiu abrir. Depois e só já no elevador se permitiu respirar. No espelho que cobria toda uma das paredes do elevador viu reflectida uma mulher profundamente magoada. Desejou não ser essa mulher.

 

 

 

(...)

 

texto inédito

de Cláudia Moreira


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publicado por magnolia às 04:16
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Terça-feira, 5 de Julho de 2011
"A parte prática do Amor"

 

 

 

 

E porque gostava muito de passar à fase seguinte deste concurso vos peço,  votem aqui.



publicado por magnolia às 10:23
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Cláudia Moreira

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