Falar sobre tudo e mais alguma coisa
Sexta-feira, 16 de Setembro de 2011
Leonor ou um caminho sem regresso

 

 

 

(...)

 

Cá em baixo outra vez, voltei a entrar na cozinha. Foi ali a primeira vez. Foi ali a primeira vez que a sua mão enorme, a pesar uma tonelada, me atingiu o rosto magro e indefeso e me deixou magoada e surpreendida. Tão surpreendida que nem sequer ergui as mãos para me defender. Tinha casado há três meses. Tinha o coração ainda cheio de ilusões. Bateu-me com as costas da mão num movimento rápido, doloroso, simples. Depois virou-me as costas uns segundos. Quando me olhou novamente pediu-me perdão. Os olhos injectados de sangue. Pensei que eram lágrimas. Inocente. Tão inocente que eu era naquela altura... Quando me tentou beijar, senti o seu hálito alcoolizado. Então percebi que estava bêbado. Afastei-o com brusquidão e ele saiu da cozinha, cambaleando, murmurando palavras que não entendi. Tudo isto demorou um minuto. Passei o resto do dia a chorar, inconsolável. Era sábado.

 

À noite quis fazer amor comigo. O meu rosto estava inchado e dorido. Fizemos amor entre lágrimas e pedidos de perdão. E acusações. Disse-me que a culpa era minha, por ser demasiado bela. Não o questionei e ele reiterou as juras de amor eterno.

 

Uma semana depois eu estava a cozinhar um frango assado no forno do fogão de lenha, prato que ele adorava e que eu adorava cozinhar para lhe agradar, quando ouvi o ranger do pequeno portão ao abrir. Ao contrário do costume ele não veio logo até mim. Demorou-se na horta e estranhei. Fui até à porta com um sorriso imenso na boca para logo o apagar. O meu marido estava desgrenhado, sujo e bêbado. Tentei retroceder silenciosamente para que não me visse, mas não consegui. Entrou na cozinha e sem razão chamou-me nomes ordinários e riu-se. Um riso escarninho que não lhe conhecia. Chamou-me para ao pé dele. Agarrou-me num dos braços com força e atirou-me para uma cadeira com violência. Depois aproximou-se novamente e puxou-me pelo braço com tanta força que achei que mo tinha partido. Percebi que me ia bater novamente e tentei fugir. Não consegui. Implorei que não me batesse mas em vão. Senti os estalos na cara. Um. Dois. Três. O sangue a escorrer-me pelo lábio. À visão do sangue afastou-se com brusquidão. Deixou-me cair, tombada no chão e saiu porta fora. Só voltou de madrugada. Entrou cambaleando no quarto. Eu fechei os olhos com força e fingi que dormia. Fingi que dormia. Não suportava a ideia de que me tocasse depois de tudo. Deitou-se ao meu lado, de roupa a cheirar a fumo, a terra e a vinho e adormeceu. Depois eu não pude dormir mais um segundo que fosse e ele dormiu um sono agitado e mal cheiroso. A meio da noite vomitou e eu, enojada, tive que limpar. Lá fora o vento de Inverno uivava e a mim só me apetecia morrer.

 

De manhã mais uma vez só a sua boca foi capaz de me pedir perdão, o coração não. Sei-o agora sem qualquer margem para dúvidas. Não falei. Não falamos. O pedido de perdão ficou por ali, preso entre as pedras da casa, pendurado nas árvores e nas videiras.

 

Depois desse dia outros vieram, uns melhores outros piores. Nalguns ele bebia, noutros nem por isso. Noutros batia-me, noutros nem por isso. Os ciúmes toldavam-lhe a visão e a compreensão. Eu era ao mesmo tempo a mulher ideal, bonita e sincera e a pior mulher do mundo, infiel e mentirosa. Amava-me e batia-me. Amava-me e maltratava-me. Amava-me e insultava-me. Amava-me e odiava-me. Ou odiava todas as mulheres. Nunca cheguei a uma resposta concreta, nem me importava porque a dor era demasiado grande.

 

Nos dias bons, depois de regar a horta ao final da tarde, vinha sentar-se ao pé de mim enquanto eu descascava os legumes para a sopa. Falava do preço das hortaliças no mercado, das enxadas novas do vizinho, mostrava-me mais um corte que tivesse feito nesse dia. Depois pedia-me que lhe desse uma bacia com água quente para se lavar. Mais tarde, já depois do jantar, ficávamos a conversar sobre o futuro. A mim parecia-me um absurdo, ele falava com o entusiasmo de um cego que não sabe que é cego. Nós nunca seriamos felizes.

Nos dias maus entrava em casa tarde e a más horas, batia com as portas e largava as botas cheias de bosta de vaca no quarto. Eu sabia que tinha estado na taberna e que não tinha saído de lá sem beber pelo menos quatro ou cinco ou dez copos de vinho. Tresandava. Eu fingia dormir, quase sem respirar, muita quieta no meu lado da cama, a tentar não ser notada. Um som a mais e seria mais uma noite de pancada e de lágrimas e de tristeza. Por vezes acontecia de se deitar, vestido por cima da colcha de trapos feitas pelas minhas mãos em noites de rapariga solteira em que não me autorizavam sair, e adormecer sem ter tempo de me acordar com roncos e palavrões. Noutras vezes, naquelas em que a sorte me abandonava, ele chamava por mim aos berros e não desistia enquanto não olhava para ele nos olhos, fingindo estar estremunhada, acabada de acordar. Era certo que na manhã seguinte teria algumas novas nódoas negras.

 

Foi numa noite assim, dois anos depois de nos termos casado, que tomei a maior decisão da minha vida. Era sexta-feira. Lembro-me sem qualquer dúvida porque tinha ido à feira comprar uns metros de tecido para um vestido. Queria fazer um vestido novo, folgado, uma vez que em breve aqueles que usava iriam deixar de me servir. Estava grávida. Não tinha ficado radiante, mas pensei que talvez um filho servisse para aplacar as dúvidas e a fúria do meu marido. Quando cheguei a casa, contrariamente ao costume, ele já estava em casa. Quis saber de onde vinha. Eu, apesar de tudo estava feliz, e de sorriso nos lábios mostrei-lhe o tecido. Depois, ingenuamente, perguntei-lhe porque estava em casa aquela hora de tão pouco costume. Estava à minha espera, disse-me ele. Estava à espera da galdéria que bastou o marido voltar as costas para sair de casa e ir ter com outros homens. Disse-me que me tinha visto na feira a falar com um homem. Quis protestar mas não pude sequer que passasse do pensamento. Não pude exprimir a surpresa que me ia na alma. Ainda eu estava a fazer o trejeito de espanto nos lábios quando senti a sua mão calejada na minha cara. Não tinha sido o primeiro, mas talvez tivesse sido o mais doloroso. Estava feliz naquele dia e nessa felicidade não tinha cabimento um estalo, a dor desse estalo, a injustiça desse estalo, a humilhação desse estalo. A desilusão, nesse dia não tinha cabimento a desilusão de perceber que nada faria mudar a maneira de ser daquele homem que anos antes tinha habitado os meus sonhos mais românticos. Na barriga carregava um fruto desse sonho antigo.

 

Caí no chão desamparada, sem que as minhas mãos fossem capazes de se agarrarem a alguma coisa que me ajudasse a amparar a queda. Olhei-o ainda sem perceber e vi os seus olhos raiados a sangue, a sua cara manchada, as roupas sujas do trabalho desalinhadas, o cabelo grande, sujo e despenteado. Os dentes enegrecidos pelo álcool e pelo tabaco, dentro de uma boca que era uma abertura no rosto, um esgar. Depois, tão rápido como nunca julguei ser possível, baixou-se para me agarrar e levantar, mas só para me voltar a bater. Voltei a cair no chão. As lágrimas a correrem-me pela cara. A dor latejante na cara. A dor lancinante no peito. No chão, indefesa, senti as suas botas de trabalho darem-me um pontapé sem pena. Senti algo a estalar dentro de mim. Eram as costelas. Depois outro e outro. Depois puxou-me pelos cabelos para que ficasse mais ao nível dos olhos dele. Queria chamar-me puta, vaca, galdéria e outras palavras que já não me lembro, que afinal queriam dizer todas a mesma coisa, mas queria dizê-las dentro dos meus olhos. Dentro da minha alma. Cuspia as palavras. Salivava-se. Mal conseguia ouvir o que me dizia porque as minhas mãos estavam sempre a fugir para a cabeça, protegendo-me ou apenas tentado fazê-lo, desesperadamente.

 

Durante uma hora ouvi insultos, senti pontapés, puxões de cabelo, estalos. No fim dessa hora tinha a roupa rasgada, a boca ensanguentada, um olho que já não via coberto por um enorme pedaço de carne tumefacta. Doía-me o peito violentamente e mal podia respirar. Caída no chão sem forças para me levantar, já nem fui capaz de chorar.

 

Ele, raivoso de mim, saiu porta fora, batendo em todas as esquinas, vociferando impropérios. Ouvi ao longe o portão abrir mas não o ouvi fechar. 

 

Não sei que horas seriam, nem quanto tempo teria passado, mas uma vizinha estava ao meu lado tentado acordar-me quando abri os olhos. Eu lembro-me claramente que não fui capaz de me mover nem de falar. Pouco depois a sirene de uma ambulância tocou mesmo à minha porta e senti-me a ser levada para dentro dela. Depois a escuridão.

 

Dias mais tarde, ele veio ver-me. Estava de banho tomado, roupa limpa mas por passar a ferro e barba feita, mas no rosto trazia a marca de noites em claro e da má vida dos últimos anos. Cheirava a álcool. Talvez trouxesse também a marca dos remorsos impressa na pele. Pediu-me perdão. Não lhe respondi. O meu olho esquerdo ainda não abria o suficiente para o ver. Também não o queria ver. As três costelas partidas e o braço desmanchado não me davam grande vontade de o ver. Virei-lhe o rosto a custo para que não me visse os olhos. Não insistiu.

 

Mais tarde, quando o médico me deu alta veio buscar-me. Chamou um táxi. Pela janela vi desaparecer a cidade e aparecer a aldeia. Os campos cultivados e as pequenas hortas. As casas de pedra e os castanheiros frondosos. Quando entramos na rua da casa que julguei sempre ser o meu lar, estremeci. Entramos no pátio e deixei-me ficar para trás. Andei devagar. Não queria entrar novamente naquela casa onde julgara estar a felicidade mas que ao invés disso tinha encontrado a violência e a tragédia. Já não tinha filho nenhum nas entranhas. Não lhe falei uma única vez. Era de noite quando chegamos.

 

No dia seguinte, mal ele saiu para o campo, tomei banho, vesti a minha melhor saia e uma blusa branca de seda. Vesti um casaco preto de lã mais grossinha porque estava frio. Peguei na carteira de tiracolo e numa pequena mala onde tinha posto duas saias e duas blusas, alguma roupa interior, pouca e o álbum de casamento. Não olhei uma única vez para trás antes de fechar a porta. O portão rangeu nos gonzos como sempre rangia. Fechei-o e comecei a andar sem destino. Ainda não sabia para onde iria, só não podia ficar ali.

 

Passaram-se anos. Muitos anos. Nunca dei uma explicação. Ele nunca ma pediu. Os meus pais nunca me pediram para voltar para casa. Os vizinhos sabiam o porquê do meu desaparecimento repentino. Eu nunca quis voltar à terra que me viu nascer, crescer e casar. O medo era uma coisa que se colava à pele e à carne.

 

Mas agora ele estava morto. Há muitos anos que estava morto e não me podia fazer mal. Doença prolongada, tinham-me dito em conversa que fora vítima de doença prolongada. Eu sabia que tinha sido uma cirrose. Que mais poderia ter sido?

 

Sai a correr da cozinha para a luz do dia e deixei-me cair, quase desfalecida nas escadas sujas. Tentei respirar normalmente mas senti que não estava a conseguir. Era uma bola enorme na garganta feita de dor, de angústia e de tristeza que me impedia de respirar. No peito um peso, como se tivesse costelas feitas de ferro, externo feito de ferro, pulmões feitos de ferro…apenas o coração parecia ser feito de carne e sangrava. Apesar dos trinta anos que me separavam daqueles tempos a dor era a mesma. Como se tivessem passado apenas cinco minutos. Levei a mão à boca e era como se ainda pudesse sentir a viscosidade do sangue nos meus dedos.

 

As lágrimas soltaram-se então e deixei-as correr silenciosamente pela minha cara, aterrando no meu vestido preto, deixando nele marcas redondas. Depois de uns momentos que não pude contar e nem sequer me importou contar, enxuguei as lágrimas e olhei o céu. Estava azul. O sol brilhava depois do nevoeiro da manhã. Os pássaros chilreavam e as ervas que cresciam por ali estavam verdes e frescas. As árvores com as suas folhagens densas e que não viam uma tesoura de poda há muitos anos, estavam gloriosamente altas e bonitas. A casa a cair parecia um fantasma do passado, silenciosa e quieta. Sem vida. Apesar de tudo era um lugar bonito. Poderia ter sido o meu lar, o meu refúgio, aquele lugar único no mundo onde nos sentimos em casa. Não foi. Talvez agora não importasse lamentar mais o passado. Talvez fosse hora de esquecer. Durante trinta anos tinha estado adormecido pela distância, o sentimento de raiva e de revolta. Agora já não importava que voltasse ao de cima porque aquele que causara estes sentimentos estava morto, enterrado debaixo de sete palmos de terra húmida e fria. E sozinho. Como sempre estivera em vida.

 

Devagar, levantei-me e caminhei para o portão. Tinha chorado as últimas lágrimas por ele e por mim. Não me incomodei sequer em fechar o portão. Nem sequer olhei para trás.

 

Fim

 

 

Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira

   

 

 

 

 


tags: ,

publicado por magnolia às 09:16
link do post | comentar | favorito

7 comentários:
De green.eyes a 20 de Setembro de 2011 às 18:30
Claudia ... estou sem palavras.

É sem duvida uma história fantastica.

Tens escrito coisas muito bonitas, mas acho que este texto é uma obra de arte. ESTÁ LINDO, FANTÁSTICO. Estava longe de mim um final assim, estava a imaginar outro tipo de história ... mas adorei.

Parabéns e ainda bem que me avisas-te que já tinhas publicado o "fim" não o podia perder um texto destes ...

Beijinhos

P.s. por favor, não escondas nem guardes para ti textos semelhantes, são demasiado belos para ficarem no anonimato.


De magnolia a 20 de Setembro de 2011 às 23:02
Muito obrigada por tantos elogios Ana:))))

Fico muito feliz que tenhas gostado:))))

Vou publicando....a ver como são recebidos os meus contos:)

Beijinhos e uma boa noite para ti!


De mfssantos a 23 de Setembro de 2011 às 22:57
O tema é triste...Mas gostei da forma. Não sou ninguém.Mas quem gosta de escrever, faz bem em partilhar. Parabénssss. espero reencontrá-la algures umoutro dia.


De magnolia a 24 de Setembro de 2011 às 09:26
Obrigada! :)

Também espero que sim!

Obrigada pela visita e bom fim-de-semana!

Um beijinho


De ãverse a 27 de Setembro de 2011 às 11:49
:D Leitura em dia!!!

E gostei particularmente deste...
de ficar a pedir continuação!



De magnolia a 28 de Setembro de 2011 às 12:51
hummm....agora a continuação seria o funeral ...:P


De averse a 28 de Setembro de 2011 às 15:18
:D sim... ou talvez não!!! uma palpitação, regresso a casa , uma carta :D :D :D
ou fica mesmo assim, porque permite a cada um imaginar
muito bom mesmo parabéns


Comentar post

...e mais ainda...
Cláudia Moreira

Cria o teu cartão de visita
Março 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


Ideias recentes

Entrudo

Fábula

primavera

música, da boa.

poema simples

A invenção do Amor

we all do have some nost...

manhãs

poema simples

That 'cause sometimes I t...

breve história de uma árv...

O Humor dos outros.

2013 - os livros que li, ...

Feliz Ano Novo!

Porque os livros (também)...

2013 - os livros que li, ...

That 'cause I think of my...

Estes já têm lugar na min...

Quem se lembra?

2013 - os livros que li, ...

Ideias antigas

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Julho 2007

Junho 2007

Março 2007

Março 2006

tags

todas as tags

links
Procuras alguma ideia em especial?
 
Ideias em pelicula
blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub