(...)
Por um instante voltei ao passado. Voltei a ver a cozinha aquecida pela lareira crepitante, o pote de três pés em cima onde cozia a sopa. No que restava dos antigos armários agora sem portas, caídos, via-se crescer musgo e cogumelos. A janela aberta deixava entrar a vegetação rastejante. Por momentos senti o cheiro do refogado dos dias de Domingo e que ainda parecia impregnar as paredes, o chão e toda a casa. Eu estava ali em frente ao lava-loiça e usava um avental branco debruado a renda. O cabelo preso dava-me um ar antiquado, porém e apesar de há muitos anos ter cortado o cabelo, ainda era assim que me via muitas vezes.
Voltei ao exterior e respirei fundo.
Depois, subi as escadas a custo. As pernas já não queriam dobrar como antes. As escadas de pedra ladeadas por corrimões de madeira estavam a ponto de ceder debaixo das minhas mãos. O bicho da madeira tinha-as comido aos poucos durante aqueles longos anos de abandono. Lá em cima, pela janela caída, pude ver o céu azul, as árvores de sempre, apenas mais altas, mais frondosas. Encostei-me à parede suja para evitar cair. Estava nauseada, tonta. O quarto vazio cheirava a Sábados de manhã. Cheirava a lençóis lavados no tanque e a flores frescas acabadas de colher. Cheirava a promessas de uma vida longa e feliz, a dois. O ruído das folhas secas, caídas pelo chão de madeira sujo e carcomido a serem levadas pelo vento fizeram-me voltar ao presente. Um soluço estava preso na minha garganta, queria sair, mas não estava a conseguir libertar-se do meu corpo velho e mirrado.
Arrastei o meu corpo como pude até à sala. Por momentos os sofás de pés de madeira e almofadas com motivos florais estavam outra vez diante dos meus olhos num convite mudo. A cristaleira com o meu melhor serviço de jantar. O pano de croché na mesa de jantar feito por mim em muitas noites de espera dolorosa. As cadeiras alinhadas em volta da mesa redonda. Também vi o homem que foi meu marido durante os piores anos da minha vida. Aqueles que deveriam ter sido os melhores de todos. E agora como num passe de mágica, ali estava ele, sentado na sua poltrona de sempre, ouvindo a rádio, atento, sem se lembrar de mim, e eu ali a rondar, carente de atenção e carinho.
Uma vertigem fez-me cambalear e tive que me agarrar a uma das paredes húmidas e já quase sem cal. Fechei os olhos e respirei fundo.
Desci novamente as escadas, devagar, muito devagar. As recordações eram tantas que me pesavam como se carregasse aquela casa inteira nas costas. Doía.
continua (...)
Texto de ficção ecrito por Cláudia Moreira
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi