Texto inédito
Ficção
O silêncio da manhã preenchia a rua toda. A casa, velha, antiga, permanecia ali, quieta, onde sempre estivera. Tinha sido há trinta anos a ultima vez que os meus olhos tinham visto aquelas pedras e os meus pés tinham pisado aquele chão. Agora passados tantos anos tinha resolvido voltar, talvez para encerrar um assunto que me tinha devorado a alegria de viver durante muito tempo talvez para exorcizar os meus demónios. E eram muitos os demónios, talvez demasiados, para exorcizar.
O portão enferrujado não cedeu logo ao esforço do meu braço. Depois, quando se abriu, um barulho de ferro enferrujado contra ferro enferrujado fez levantar em alvoroço os pássaros que repousavam tranquilos, nos ramos das árvores, na quietude da manhã. Entrei. Pelo estreito carreiro cheio de ervas ainda molhadas do orvalho que me molharam os sapatos, cheguei ao pequeno pátio da casa. Levantei os olhos e pude ver como o tempo tinha degradado a casa. Anos de chuvas fortes e gelo tinham empenado janelas e os ventos fortes tinham partido vidros. Ou talvez tenham sido partidos por pedras lançadas por rapazotes sem mais que fazer. As madeiras das portas e janelas, das que ainda não tinham caído inertes no chão, estavam quase sem tinta, descascadas por anos e anos de abandono e intempéries. Pedaços de telhas partidas no chão já parcialmente tapadas pelas ervas que cresciam sem licença de ninguém por todo o lado. As escadas exteriores que levavam ao primeiro andar, em pedra, estavam juncadas de excrementos de pássaros que durante todos aqueles anos de abandono tinham feito os seus ninhos nos beirais da casa. O poço, no centro do pátio, mal se vislumbrava, tantas eram as heras que o cobriam. Árvores, algumas já raquíticas da falta de poda, estavam junto do que restava de um muro feito de pedras que alguém juntara com esforço e à custa de muitos calos nas mãos, esse alguém, eu. Outras não se tinham importado com a falta da mão humana e tinham crescido até se tornarem belas árvores adultas.
Olhei o céu. Estava azul agora que a neblina da manhã se desvanecera. O sol cobria tudo de luz. Um pássaro negro cortou o céu azul ao meio. Um melro talvez. Ao longe ouvia-se a enxada a entrar na terra e pude imaginar alguém curvado sobre a terra, preparando-a para receber as cenouras, as couves, os tomates e outros legumes da horta.
Meia dúzia de passos foram suficientes para chegar perto da porta de entrada. Estava fechada. Também ali as ervas tinham crescido sem licença, aproveitando todas as frestas na madeira, ocupando todos os espaços vagos entre as pedras da parede. Uma lagartixa afastou-se a correr, abanando o rabo, com medo dos meus pés, chateada porque lhe roubei a tranquilidade da sesta da manhã. Pus a mão na porta e empurrei. Com força. O som da madeira a estalar e uma chuva de pequeninos pedacinhos de madeira a caírem no chão. Mais um bocadinho de esforço e a porta cederia. E mais um bocadinho de força e a porta cedeu. Finalmente abri a porta o suficiente para passar. Um cheiro de terra invadiu as minhas narinas. A aragem repentina provocada pela abertura da porta causou um restolhar de folhas secas no chão da sala. Ali era a nossa antiga cozinha. Estava quase vazia. As paredes negras de humidade acumulada ao longo de trinta anos de abandono. As janelas sem vidros. Numa delas uma cortina esquecida. Um farrapo apenas. As ervas daninhas a cresceram pelo meio da madeira podre. A lareira vazia ainda negra de fuligem de tantas noites a conter labaredas. Labaredas que aqueceram as nossas noites durante tantos Invernos e nos aqueceram comida em tantas refeições.
Continua (...)
Cláudia Moreira
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