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Algum tempo depois do divórcio ter acontecido tinha conhecido uma pessoa, um homem dono de uns belos olhos azuis. E no momento em que viu esse homem de olhos azuis, o homem sem rosto com quem sonhara antes materializara-se. E esse homem estava ali em cima também, na festa. Pertenciam ambos ao mesmo grupo de amigos e um dia os seus olhos tinham-se encontrado. Depois desse olhar Matilde nunca mais foi a mesma pessoa. Esse olhar tinha ficado cravado na sua memória. E em nenhum dia depois desse dia, deixara de ver essa mesma cara até ao dia presente. Infelizmente essa pessoa não partilhava do seu sentimento. Esse olhar tinha sido como tantos olhares. Como teria olhado para uma árvore, para um prédio ou para uma ponte. Nele não despertara o que despertara nela. Apesar de não ser mais novo do que ela, ainda não vivera muito do que ela já tinha vivido. Ela já tinha casado e ele não. Ela já tinha tido filha sua filha e ele não tinha nenhum. Ela já passara pelo divórcio e ele nem sabia o que era o casamento. Estavam a muitos quilómetros de distância um do outro. Fisicamente eram quase vizinhos, emocionalmente estavam em lados opostos do universo. Matilde sabia que mesmo que um dia ele a olhasse com mais atenção não seria possível uma relação. E isso magoava ainda mais. Matilde sofria com a injustiça de ter sido atingida pelo olhar de um homem que não poderia ser seu. Perguntava ao universo mas o universo não tinha respostas. Julgava ela que não deveria ser permitido gostar de quem não gosta de nós. Mas era. Prova evidente era este seu gostar de um homem que a via transparente.
Matilde tinha completado trinta e cinco anos no Verão. Se não estivesse com a sua filha ninguém lhos daria. Era uma mulher de cabeleira negra e que de muito farta e ondulante se fazia notar onde quer que estivesse. Aos trinta e cinco poucos cabelos brancos manchavam o negro asa de corvo. Do pai herdara os olhos azuis e as pestanas fartas. Da mãe, o peito generoso! No conjunto, Matilde não se podia queixar. Aos trinta e cinco anos era uma bela mulher. Dona de umas pernas bonitas, que quase sempre usava escondidas, caminhava segura pelas ruas da velha cidade onde vivia. Ainda havia quem virasse a cara para a ver passar. No entanto, dentro de si, vivia a escuridão e no espelho via reflectida uma mulher desinteressante e gasta. Como poderia sequer ter a ilusão de que agradaria ao homem que retivera no olhar? Velha e gasta, de alma puída e de coração partido em pedaços? Não tinha a ilusão, já não a tinha…
Era tarde e a chuva não fazia tenções de parar. Matilde saiu do aconchego das árvores e caminhou em direcção a casa. As ruas vazias da velha cidade devolviam o som dos saltos dos sapatos. Um gato atravessou-se no seu caminho. A luz de um candeeiro apagou-se à sua passagem. Seria um sinal? Estava cansada e os olhos cheios de lágrimas mal a deixavam ver por onde ia. Continuou devagar. A sua casa estava vazia e continuaria vazia. A sua filha estava com o pai nesse dia. As novas rotinas impostas diziam que de quinze em quinze dias a filha iria passar o fim-de-semana com o pai. Nesses dias era pior. Matilde andava pela casa sem despir a t-shirt velha com que dormia. Comia cereais e lia sem parar. Por vezes, levantava os olhos do livro e via pendurada nas paredes a solidão. Outras vezes ia dar com ela dentro da gaveta da roupa interior onde agora repousava apenas a sua. De noite adormecia a chorar e de manhã apenas o seu lado da cama estava desfeito. Do outro lado nem uma ruga. Matilde ia então colocar-se em frente ao espelho e chorava outra vez ao ver o seu rosto coberto de marcas de choro nocturno. Depois lavava a cara e iniciava o seu já gasto discurso. Dizia a si própria que estava bem melhor assim, sozinha. Dizia que a liberdade ganha com o divórcio era o melhor que poderia desejar. Viveria assim sem amarras para o resto da vida e poderia fazer apenas o que lhe desse na gana. Em voz alta dizia que o homem dos olhos azuis não era de todo uma boa escolha. Que o seu coração errara. Matilde esforçava-se por pensar com racionalidade. Ela sabia que a sua vida assim sozinha era bem mais tranquila. Também pensava na parte financeira. Matilde ganhava rés-vés o que precisava para se sustentar, mas não teria como embarcar nos planos de pessoas que não têm responsabilidades. Como poderia achar que uma relação agora faria sentido sem ter problemas de logística? E quando o seu par quisesse ir de férias? Ou jantar fora? Teria que ser a desmancha-prazeres? Matilde rematava o assunto com a parte mais complexa. Não queria mais filhos. Não poderia estar com alguém que ainda não os tivesse. Seria isto justo para ela? A escolher ter que escolher em função de quem já tivesse filhos ou não, de quem já tivesse sido casado ou não, de quem tivesse dinheiro ou não? E o amor? E a química? E as afinidades?
Matilde chegou a casa e fechou a porta atrás de si. Lá dentro, o silêncio. Caminhou até ao seu quarto e em frente ao espelho de corpo inteiro tirou a roupa molhada. Olhou-se ao espelho, nua, e viu uma mulher comum. Tocou com a mão no peito e lembrou-se de ter feito o mesmo gesto aos dezoito anos. Tinha sido na noite depois de ter feito amor a primeira vez com o homem que fora seu marido. Nessa altura tinha a vida toda pela frente. E todos os sonhos do mundo cabiam dentro de si. Matilde pensou que seria bom voltar aos dezoito anos e não apenas pelo corpo mais firme que agora já não tinha. Matilde queria ter a oportunidade de escolher novamente, melhor. Era um exercício de pensamento inútil, bem o sabia. A vida é um caminho de ida, apenas. Não se pode voltar atrás, às encruzilhadas, para seguir por um caminho diferente do escolhido antes. Matilde sabia-o, mas não deixava de sentir a frustração causada por essa verdade.
Baixou os braços e arrastou-se até à cama. Debaixo dos lençóis frios, nua, deixou que as ultimas lágrimas caíssem na almofada. Pensou novamente no homem que amava e que não a amava. Pensou no abraço que o viu dar a outra mulher e sentiu de novo a mesma dor que sentira e a pequena réstia de esperança que por vezes ressurgia, a abandoná-la de novo. Pensou na sua filha. Pensou que talvez essa dor amanhã estivesse menos dor, se tivesse sorte. Pensou no sorriso bonito da sua filha. Pensou que talvez no dia de amanhã fosse sentir o mar de Outubro nos pés. Pensou que talvez no dia de amanhã o sol brilhasse e lhe desse a força que precisava. Pensou que o amanhã seria mais um dia, mais um passo no longo e misterioso caminho da vida. Ninguém sabe nunca para onde nos leva este caminho.
Aos poucos o sono foi chegando e Matilde deixou-se envolver em sonhos. De manhã a chuva já não caía e o sol entrava pela janela que no meio das lágrimas se tinha esquecido de fechar.
Fim
Texto de ficção inédito escrito por Cláudia Moreira
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi