imagem retirada da net
Continuação da história da Marta para o desafio desta semana da Fábrica das Histórias.
E agora, para finalizar, conto-vos esta ultima parte da história, e isto para que não fiquem na ansiedade de saber o desfecho. Não tenho vontade nenhuma de a reviver. Sinto a vergonha de quem cometeu um pecado mortal.
Estavam a ler-lhe os direitos e eu por momentos senti que tinha que ficar e assumir a metade da culpa. Por momentos o meu coração ficou do tamanho de um berlinde e pareceu parar. Ficava ali e entregava-me ou ia embora? Pensei depressa. Tinha que sair dali. Era o combinado. Meti as mãos nos bolsos e dirigi-me para a saída, tentando parecer apenas incomodado. No entanto ao tentar sair um grupo de gente histérica barrou-me o caminho. Um polícia postou-se diante de mim e eu olhei-o nos olhos. Sustentei o olhar. Depois virei-me numa tentativa de sair dali por outro lado e foi então que a vi. Estava tranquila agora, toda a preocupação que lhe vi no olhar minutos antes tinha desaparecido. No seu olhar li uma interrogação muda:
- Que vais fazer?
E eu hesitei um momento para a ver.
- Vai embora depressa! – Li nos seus olhos uma súplica.
Eu não queria deixá-la ali entregue aos leões mas também não queria ser apanhado. Olhei outra vez mas ela continuava de cabeça erguida, com pose de rainha. O seu vestido estava impecável assim como o cabelo. Era como se tivesse resolvido aceitar o inaceitável. As mãos atrás das costas e os dois gigantes fardados atrás dela eram os únicos indícios de que era ela quem estava na mó de baixo. Fez um gesto vago com o olhar e eu obedeci.
Virei as costas e juntei-me a uma pequena multidão que era escoltada pela polícia para fora do edifício. Deixei-me levar.
Depois, quando a luz do sol me atingiu em cheio percebi que talvez ela nunca mais a visse. Por momentos eu, o durão, senti-me quebrar. Sentei-me no chão no jardim em frente ao edifício onde a deixara e escondi o rosto nas mãos. O pensamento que me assolava era terrível. E continuava com o coração apertadinho. Momentos depois o pensamento terrível passou pela minha cabeça outra vez.
Gosto dela…
Não podia acreditar nisso. Não podia ser. Éramos colegas de profissão e nesta profissão não há este tipo de sentimentos. No entanto a dor que sentia de a saber presa para sempre era tão grande que eu não podia pensar em mais nada.
Gosto dela…
Estava perdido se este pensamento se materializasse. Estava absolutamente perdido. Sai dali a correr o mais que pude. Deixei para trás aquele cenário onde a multidão à porta dizia coisas como Meu Deus! e malandros, deviam estar todos presos, estes gatunos!, e corri o mais que pude, para bem longe dali.
Quando já não aguentava mais o cansaço e o meu coração parecia querer explodir, estava perto do mar. Fui até à praia e descalcei-me. Enterrei os pés na areia fria e caminhei até mesmo à beira da água. Entrei na água de roupa e tudo e deixei-me envolver pela água gelada durante tanto tempo que quase morri de hipotermia.
A primeira vez que a visitei pareceu-me bem. Já tinham passado alguns meses e ela já tinha sido condenada mas parecia bem, animada. Não me acusou de nada naquele dia nem em nenhum outro dia em que a tenha visitado. Fui visitá-la muitas vezes porque a amava. Pelo menos era isto que eu me dizia em silêncio. Talvez fosse apenas para descarregar a minha consciência pesada. Falamos muitas vezes do que aconteceu. Discutimos o que correu mal e o que deveríamos ter feito. Como nos sentíamos aquele dia. Falamos do homem que a seguira e a deixara tão nervosa. Falamos de tudo. Só nunca lhe disse que tinha descoberto naquele dia que a amava. Nunca lho disse.
Em vez disso transformei a minha vida numa vida normal. Arranjei uma profissão séria. Casei e até tive filhos. Quando a visitava nunca falava disso. E a minha família não fazia ideia do meu passado nem da existência dela. As minhas visitas à prisão eram um segredo absoluto.
E mesmo assim nunca a deixei de amar.
E os anos passaram e mesmo assim eu nunca fui capaz de lho dizer, mesmo depois de a ter visto definhar vagarosamente entre as altas paredes daquela prisão.
Aconteceu num dia em que ninguém a achou com boa cara. A depressão causada pela falta de liberdade e apoio da família tinha-se instalado definitivamente no seu corpo e alma. Estava muito magra e tinha cortado o cabelo tão curto como um rapaz. Já não a via sorrir há muitos meses mas nem assim fui capaz de lhe dizer que havia alguém que a amava profundamente e que estava arrependido de não me ter entregue também, dividido assim a culpa com ela. Telefonaram-me num dia de Novembro para avisar à falta de família a contactar. Tinha morrido de tristeza.
O dia do funeral foi uma segunda-feira de Novembro. A chuva fina não tinha parado de cair desde madrugada. Ainda se viam nas campas de mármore negro os restos mortais das flores do dia dos fiéis defuntos. Avancei por entre as lápides e os anjos e os Cristos e as imagens da Virgem pareciam olhar acusadoramente. E eu fui baixando os olhos. Não fui à capela onde o padre deve ter dito meia dúzia de palavras da praxe porque nem sequer a conhecia. Depois de uns minutos de solidão em que não consegui tirar os olhos daquele buraco fundo feito na terra escura e molhada chegaram. Era apenas um velho carro funerário com o condutor e dois rapazes vestidos de negro. O padre estava mais preocupado com a lama nos sapatos mas tentava fazer um ar sério e condoído muito próprio dos funerais. Não tinha mais ninguém. Nenhum familiar, nenhum amigo, nenhum colega da escola. Ninguém. Apenas eu e o padre e os dois funcionários da funerária que pareciam aborrecidos com o peso extra que foram obrigados a carregar.
Abriram o caixão para dizer uma breve oração. Não me parecia ela sequer. A roupa era grande demais e ela estava demasiadamente magra. O seu rosto estava pálido. Uma lágrima desceu pela minha cara mas ninguém viu porque ainda não tinha parado de chover. Desceram o caixão à terra e foram embora. O coveiro aproximou-se começou a tapar o caixão com pázadas de terra com a indiferença necessária à profissão. Depois que fiquei só sentei-me ali num banco de pedra e chorei. Não sei o tempo que fiquei ali, sei apenas que o cheiro a cedro era intenso e a minha culpa insuportável.
Os dias passaram e a dor começava lentamente a diminuir. Mas um dia tinha um embrulho estranho na caixa do correio. Era dela. Ela tinha deixado esse embrulho com uma colega da prisão. As instruções eram fazer-mo chegar às mãos se algo lhe acontecesse. Estava tudo explicado numa carta escrita por um punho cheio de tremuras. Todos os sentimentos escondidos desde anos antes de ter sido presa. Ela sempre me tinha amado. Sempre. E nenhum de nós tinha sido capaz de o dizer. O nosso amor perdera-se entre outros sentimentos menos valorosos mas definitivamente mais altos, a vergonha, a culpa, a ambição, o medo e muitos outros que não vale a pena listar. Junto com a carta o vestido. Toquei-lhe ao de leve e um arrepio percorreu todo o meu corpo. Lembrei-me então daquele dia em que ela o trazia vestido e senti uma saudade imensa. Abracei o vestido como se a abraçasse a ela. Depois guardei-o numa caixa juntamente com a carta.
Desde esse dia que visito a campa dela religiosamente todos os sábados de manhã, faça sol ou faça chuva. Converso com ela e digo-lhe em voz alta tudo o que nunca lhe disse em vida. Continuo a amá-la em segredo e sei que vou continuar a amá-la para sempre. A culpa de ter sido covarde nunca irá desaparecer mas ainda tenho esperanças que ela, esteja onde estiver, me tenha perdoado.
Já se passaram muitos anos e já sou um velho, mas ainda sinto falta dela. Estou sentado num banco de jardim e penso em todos os momentos que tivemos. Tenho saudades. Tenho muitas saudades. Infelizmente já não há como a trazer de volta. Resta-me pois agarrar-me à lembrança do seu sorriso bonito e sonhar.
Texto de ficção escrito por mim para a Fábrica das Histórias.
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi