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Já estavam todos reunidos para ceia de Natal. Ele na cabeceira da mesa, a esposa andava ainda aos saltinhos da cozinha para a sala e da sala para a cozinha trazendo comida. Os filhos João e Joana estavam sentados do lado direito da mesa. Em frente os respectivos pares Maria e Miguel. Na frente dele os dois netinhos maravilhosos riam-se de tudo e de nada, dizendo patetices como só os meninos pequeninos conseguem dizer. Na mesa tinham imensa comida, um bom vinho para acompanhar e no final teriam sobremesas deliciosas prepradas durantes o dia pela prestável e carihosa esposa.
Sentia-se feliz. Já tinha esquecido o incidente com o mendigo que se acercara dele de tarde à saida da fabrica. Os negocios tinham corrido lindamente nesse dia, fizera um negócio que renderia bastante dinheiro e vinha ainda a sorrir qando tropeçou literalmente naquele ser maltrapilho. Vadios, pensou. Não sabem fazer mais nada senão pedir. O homem ainda se tinha tentado agarrar ao casaco dele, mas sacudiu-o ferozmente. Ainda por cima cheirava terrivelmente mal. Há muito que estes mendigos rondavam por ali. Se ainda fossem pobres verdadeiros como os que morrem de fome em África, mas aqui não há necessidade nenhuma disso. Têm bom corpo para trabalhar, dizia sempre ele.
- Senhor, não tenho casa nem familia...vivo aqui na rua....ajude-me por favor...
Virou-lhe as costas ostensivamente e foi para casa. A familia já o esperava para a ceia e na verdade ele estava mesmo muito ansioso por este Natal. Tinha comprado toda a lista de presentes para os miudos e estava ansioso por ver a reacção deles. Tinham sido coisas caras, mas tinha dinheiro e não poupou esforços para lhes agradar. Aos filhos reservara supresas na empresa...
- Querido, serve-te!
Acordou do devaneio e serviu-se da bela posta de bacalhau, que cheirava deliciosamente bem. Todos comiam com satisfação, riam e brincavam. Um disco enchia o ar com uma melodia de Natal. As luzinhas do pinheiro de Natal brilhavam, parecendo estrelas pequeninas.
Estava assim há algum tempo em contemplação, vaidoso por ter uma familia bonita e orgulhoso por ter dinheiro para a sustentar. Fechou os seus olhos por momentos para absorver aquela sensação. E voltou-os a abrir.
o espanto estampado no rosto, um grito entalado na garganta. Estava sentado na berma do passeio em frente à sua fabrica. Tremia de frio e doi-lhe o corpo todo. O cheiro nauseabundo chegou-lhe às narinas. Era o seu proprio cheiro. As mãos sujas e geladas doiam-lhe tanto como se estivessem a ser cortadas por mil facas. Tentou levantar-se mas as costas nao se endireitavam. Descobriu que as tinha tortas.
Tantas perguntas....
Caminhou a custo pela rua até que viu uma janela iluminada. O estômago contraido pela fome, um gosto fraco na boca colada. Já não se le lembrava há quantas horas estava ali sozinho. Quando chegou à janela viu que era a sua janela e estavam todos a jantar. A lareira continuava acesa. Que vontade imensa de ir lá aquecer as mãos... Um homem estava sentado no seu lugar. Um homem que ele nao reconheceu.
Mas o que se teria passado? Tantas perguntas sem resposta...
Bateu à porta. O homem que vira sentado na mesa veio abrir.
-Vá-se embora. Não queremos cá pedintes.
Ele ainda tentou argumentar, mas já lhe tinham fechado a porta na cara. As lagrimas cairam-lhe pelo rosto. Não saberia suportar uma vida inteira assim, cheio de fome, de frio. Cheio de dores e cansaço, sentia que não teria capacidades sequer para pegar numa vassoura para varrer uma fábrica. Voltou para o seu velho cobertor. Enroscou-se bem, mas o estomago vazio nao o deixava dormir. Tiritava. Olhou para o céu e umas coisinhas brancas desciam devagar até pousar no chão. Nevava. Era noite de Natal e estava sozinho no mundo. Rejeitado e abandonado.
Pareciam que tinham passado muitas horas, parecia que aquela noite não tinha fim... Pensou no mendigo que enxotara e sentiu-se de repente com um nó no estomago, mas já não era fome, era arrependimento, era vergonha por ter julgado mal as pessoas. Era um sentimento indescritivel de amargura por saber que tinha tanto e outros nao tinham nada. Por saber que era feliz e nunca ajudara ninguem a sê-lo. Agora compreendia o quanto dói nao ter familia, nao ter amigos, nao ter apoio, ser doente, te fome, ter dores...
Foi nesse momento que viu um velho caminhar na direcção dele. Lembrava um pouco os druidas das historias dos elfos. Sentou-se à frente dele e disse:
-Feliz Natal para ti meu amigo... Creio que esta noite aprendeste uma lição...
As lagrimas toldaram-lhe os olhos e o homem desvaneceu-se na sua frente. Aos poucos as lágrimas eram tantas que nada conseguia ver...
- Pai! Pai! Que tens? Que sentes? Fala connosco pai...
Olhou-os quase sem ver. Estava de novo com a sua familia.
Saiu pela porta perante o olhar atónito de todos e voltou algum tempo depois com um mendigo.
Deixou-o aquecer-se um pouco, tomar banho e sentar na mesa com o resto da familia.
O homem mendigo chorava agradecido.
O homem rico chorava agradecido.
Texto de ficção escrito para a Fábrica de Histórias por Cláudia Moreira
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi