E então uma mão agarrou-a por um braço fortemente. E então um rosto zangado de homem perguntou-lhe o que estava a fazer. E então ela não conseguiu fazer um som. E então ela sentiu-se desfalecer. E então o silêncio. E então a escuridão.
Acordou no hospital. De inicio não se lembrou de nada. Era estranho estar ali.
Porque estarei aqui?
Depois quando abriu os olhos e olhou em volta, viu aquele rosto de homem zangado novamente e a realidade abateu-se sobre ela.
Não fui capaz…
Começou a chorar baixinho.
- Estávamos a espera que acordasse para tentar perceber se há alguém para avisar. Não conseguimos encontrar nenhuma carteira, nenhum documento. Nem sequer sabemos o seu nome.
Ela virou a cara para não ver os olhos, que ela imaginava acusadores, daquele homem.
- O que é que lhe deu para se empoleirar assim naquela ponte, mulher?
Ele estava a falar com ela como se estivesse a ralhar com alguém que conhecesse muito bem. Como a uma filha.
- Queria morrer ou quê?
Ela chorava agora sem conseguir conter os soluços.
Sim, sim, era mesmo isso que eu queria! Era só isso que eu queria…
Então o homem agarrou-lhe na mão e com cuidado, baixinho, carinhosamente, falou com ela.
- Não sei o que lhe aconteceu para querer morrer. Não sei o que lhe passou pela cabeça, mas seja o que for que tenha acontecido, tem solução. Nada é impossível de resolver nesta vida. Se é difícil? É! Claro que sim! A vida é muito difícil. Mas não impossível melhorar o que está mal, o que parece errado! É precisamente o contrário. Tudo é possível na vida… Menos evitar a morte. Temos que ter alguma força…e coragem para pedir ajuda. Pensou em pedir ajuda? Há sempre alguém que nos pode ajudar mesmo que por vezes não esteja bem à vista. Mesmo que nos pareça improvável. Não nos podemos deixar cair no desespero. Há sempre alguém capaz de nos dar a mão…Há sempre alguém capaz de nos dar a mão, minha senhora…
Ela ouvia e queria acreditar, mas sentia-se a flutuar entre a vida e a morte. Era aquilo o limbo. Não sabia se ia ou se ficava. Queria ir mas também queria ficar. Ela pensou nos filhos. Ela viu os seus sorrisos bonitos. Viu como estavam crescidos e fortes e saudáveis. Ela imaginou-os vestidos de preto junto a um caixão fechado, num cemitério, num dia de chuva miúda. Ela imaginou-os a chorar, de mãos dadas, sem ninguém em quem se apoiarem. Nem pai, nem família, nem amigos. Ele estaria sozinho, de preto, como já era hábito, sem derramar uma lágrima mas a ferver por dentro de dor. Ela estaria com o namorado e choraria e diria que ela não tinha o direito de ter feito o que fez. Ela imaginou a chuva miúda a cair e os miúdos molhados a verem o caixão entrar na terra, depois cada um deles atiraria uma flor já um pouco murcha para cova e de seguida um coveiro velho, com cara de bêbado iria cobrir tudo com terra escura e molhada. E depois eles ficariam sozinhos. Desamparados. Tristes. Teriam que viver da caridade. Abandonar os estudos. Seriam uns infelizes. E ela nunca os veria adultos, nem veria os companheiros que iria escolher para a vida e nunca veria os netos nascer. Tudo isso poderia ter sido já dali a dois dias se tivesse tido a coragem de se deixar cair nas águas do rio. E todo esse pensamento doeu como doeria se tivesse uma faca de gume afiado espetada no peito. Teria sido uma cobardia… Uma fuga… Estaria a abandoná-los…
Meu Deus…
- Eu estava desesperada…
E então ela encarou aquele estranho e nos olhos dele viu uma bondade que não tinha visto antes em ninguém. Ou talvez tivesse andado desatenta...
- Eu vou ajudá-la. Ou vou ajudá-la a encontrar ajuda. Verá que tudo se pode resolver.
- Eu vivo sozinha com os meus filhos e não tenho dinheiro para comer sequer…
Há anos que ando nisto, a esticar o mais que posso, a fazer malabarismo com o pouco dinheiro que ganho, a passar fome para que nada lhes falte…mas este mês não consegui. Falhei redondamente o meu papel de mãe e protectora…
E novamente ela escondeu o rosto entre as mãos. A dor insuportável da derrota, da impotência.
- Talvez ainda não tenham dado pela sua falta. O médico disse que mal aquecesse o corpo poderia ir embora. Eu levo-a a casa. Quem sabe no caminho não chegamos a uma solução?
Ela entrou em casa com umas roupas da caridade do hospital. A casa estava silenciosa. Nem um único ruído. Eles estavam nos seus quartos. Ela entrou no do filho e ele estava a dormir, ainda de roupa, em cima da cama e tinha um livro aberto em cima do peito. Ela tirou-lho da mão com cuidado e aconchegou-lhe um cobertor. Deu-lhe um beijo na testa e ele mexeu-se um pouco. Depois ela fechou a porta atrás de si e entrou no quarto da filha. Parecia um pequeno anjo com o seu longo cabelo claro espalhado em desordem pela almofada. Deu-lhe um beijo na testa e devagarinho fechou a porta atrás de si.
Amava-os muito. Tanto, tanto que efectivamente era capaz de morrer por eles.
No seu quarto decorado com móveis simples despiu-se devagar. Despiu-se ao espelho. Era uma mulher que ainda não tinha feito quarenta anos. O seu corpo já tinha sido um corpo jovem e bonito. Agora era um corpo. Nem gordo nem magro. Apenas um corpo com pernas braços e peito e órgãos e músculos e pele. Mas era saudável. E nessa noite quase o matou. Quase matou aquele corpo. Olhou-se nua no espelho e viu-se assim nua como estava mas estendida na marquesa de uma morgue. Alguém a cortá-la e recortá-la, alguém a profanar o seu corpo. Depois tornariam a coser o que tinham cortado e vestir-lhe-iam uma roupa qualquer trazida por uma vizinha e que estava nesse mesmo momento guardada ali no guarda-fatos e depois poriam o corpo numa caixa de madeira cheia de rendas e enfeites a que chamam caixão. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Tentou pensar naquele homem que a salvara da morte naquela noite e que lhe prometia salvá-la de outras coisas. Talvez precisasse que a salvasse de si própria. Vestiu um pijama velho de flanela e deitou-se encolhida debaixo dos cobertores no quarto frio e sem aquecimento. Já só teria três horas para dormir antes de ter que acordar para enfrentar o novo dia. Tinha combinado um encontro com o seu anjo salvador no dia seguinte ao final do dia. Ele queria a todo o custo ver o que poderia fazer por ela e ela não tivera como dizer que não. No entanto tinha-se esquecido de perguntar o nome da pessoa que a salvara. Amanhã poderia reparar esse erro. Nessa noite estava demasiado cansada para pensar. Bastava saber que era uma espécie de anjo que salvava mulheres deprimidas em pontes.
Minutos depois o cansaço venceu todos os obstáculos, todos os pensamentos, todas as lembranças e ela adormeceu.
Na manhã seguinte custou-lhe acordar e quando percebeu as horas era tarde demais para apanhar o metro para chegar a tempo ao trabalho. Amaldiçoou-se por isso. A sua vida já estava suficientemente difícil. Ainda em robe foi até aos quartos dos filhos mas eles não estavam lá. Os filhos estavam na cozinha à espera dela e tinham muitas perguntas na boca à espera de serem feitas em voz alta. Em cima da velha mesa dois sacos com compras, enormes, que alguém tinha vindo entregar nessa manhã ainda cedo.
- Ontem nem disseste nada que ias sair, mãe!
- Não contava sair…
- De onde veio tudo isto?
- Haa…Não sei…
- Não tinhas dito que não tinhas dinheiro?
Eles estavam mais intrigados com os sacos do que com a sua ausência na noite anterior. Ela também não sabia como lhes dizer sem contar tudo o que acontecera. Felizmente a curiosidade de saber o que estaria lá dentro venceu o resto e então eles esvaziaram os sacos. Era só comida. Comida. Muita comida. Pão, fiambre, queijo, sumos, leite, bolachas, iogurtes, azeite, arroz, feijão, grão, massa, maçãs, pêras e bananas e sal e açúcar. E um chocolate gigante.
Ela pensava no seu anjo salvador como lhe agradava pensar que ele era.
Eles, felizes, tomaram um lauto pequeno-almoço e saíram para a escola de mochila às costas e cheios de risos jovens e despreocupados. Ela ficou a olhar pela janela muito tempo. Do sexto andar apenas via silhuetas na rua mas sabia que ali em baixo eram os seus filhos que caminhavam pelo passeio, fazendo gestos com as mãos, conversando um com o outro. Depois olhou para as compras em cima da velha mesa de fórmica branca que agora quase não se via. Depois olhou para o calendário da marca de carros com a rapariga com pouca roupa. Depois pegou num marcador preto e fez uma cruz grossa em cima do quadrado que marcava o dia vinte. Depois percebeu que afinal tinha aguentado mais um dia. Depois pensou no seu anjo outra vez.
Depois sorriu.
Depois tomou a decisão de ir à luta novamente.
Talvez ainda houvesse esperança para ela, para eles três como família. Talvez ainda pudesse dar a volta aos problemas. Enganá-los, ludibriá-los, fintá-los. Talvez ainda houvesse pessoas que a fossem capazes de ajudar. Talvez ainda houvesse vida dentro daquela vida para ela. Sim, talvez houvesse vida e não morte. E enquanto houver esperança que haja vida não se pode pensar na morte. A morte, essa, seria sempre o último reduto.
Fim.
Cláudia Moreira
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi