Falar sobre tudo e mais alguma coisa

Domingo, 24 de Maio de 2009
O pequeno herói - parte II

O João era um garoto de rosto triste e olhar enigmático. Tão depressa me parecia um olhar triste como de repente me parecia que era um olhar de quem é capaz de mover montanhas. Depois daquele domingo comecei a procura-lo silenciosamente com o olhar. Sentia-me sempre triste quando não o via. Aos poucos comecei a ganhar a confiança dele. Ele falava pouco. Era um menino tímido, habituado a contar apenas consigo. Não foi fácil saber toda a história dele, mas depois de saber passei a admira-lo incondicionalmente.

A mãe de João estava doente há muito tempo. João não sabia dizer o nome da doença, mas eu percebi que era esclerose múltipla. Há muito que não andava. O pai, um bêbado incorrigível, tinha saído de casa pouco depois de ter nascido o irmão mais novo. João teria na altura talvez uns seis anos e não passava de um rapazinho minúsculo. Tinha acabado de entrar na escola primária e aprendia o bê-á-bá com um entusiasmo fora de serie. Ninguém sabia que por trás daqueles olhos inteligentes se escondia um rapazinho triste e cheio de problemas, com uma mãe a começar a mostrar a doença e um pai a beber demais todos os dias e que em dias muito maus lhe batia cruelmente. João nunca contou nada disto a ninguém. A mãe, mulher reservada pedia-lhe silencio e ele respeitava. Depois quando o pai saira definitivamente de casa e a mãe começara a ficar na cama cada vez mais, tomara a si a responsabilidade de tratar de tudo. Aprendeu a cozinhar algumas coisas simples por força de não passarem fome, tratava dos irmãos como podia, lavava a roupa no velho tanque da casa e ainda varria e limpava a casa. A mãe via tudo isto e agradecia a sorte em ter aquele filho maravilhoso, no entanto sentia-se mortificada por deixar que uma criança fizesse todo aquele serviço. Mas não podia deixar de aceitar aquela preciosa ajuda. O pequeno rendimento da segurança social não permitia que as coisas se passassem de outra maneira. Não tinha família chegada e nem amigos. Os pobres raramente tem amigos e os doentes ou bêbado menos ainda… Passava as noites a chorar de tristeza, sentia-se amarga e muitas vezes desejava morrer.

João andava ali no parque todos os dias a apanhar lixo. Já me tinha apercebido disso, mas um dia ganhei coragem e perguntei directamente. De inicio ele não me quis responder, mas depois acabou por me contar a história toda. Penso que andava há muito tempo com necessidade de desabafar, de contar as suas mágoas, de aliviar a alma. E eu surgi no momento perfeito.

Contou-me que andava por ali a apanhar lixo, o funcionário do parque tinha pena dele e dava-lhe alguma comida em troca dessa ajuda. Quisera muitas vezes dar-lhe comida e dinheiro, mas João era demasiado orgulhoso e só aceitou em troca de trabalho. Por isso fizeram esse acordo de entreajuda. João fez o mesmo acordo numa padaria onde vai varrer o chão, num café onde despeja o lixo todos os dias e noutros lugares onde pode dar uma pequena ajuda e onde as pessoas gostam de ajudar aquele menino herói.

Um dia pedi-lhe para visitar a mãe dele. Nunca vi tanto amor e gratidão nos olhos de uma mãe. Eu chorei como uma criança pequena com as palavras de agradecimento que aquela mãe disse ao filho na minha presença. Eu chorei de tristeza por saber que há no mundo tantas pessoas com dificuldades, tantas tristezas, tantas amarguras… Eu na minha inocência de criança sem problemas nem sabia que o mundo podia ser assim tão cruel. Foi uma lição de vida para mim. Depois tentei de alguma forma ajudar, falei com os meus pais, mas nada se compara ao que aquele menino fez durante anos e sem um queixume. Hoje, quando penso nisso, sei que se por um lado fiquei absolutamente angustiada, por outro fiquei absolutamente orgulhosa por ter aquele menino como amigo, por saber que existem no mundo pessoas com uma alma de valor incalculável. Heróis, verdadeiros heróis, sem capa, sem espada, sem poderes mágicos, mas muito mais heróis.

 

 “Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fábrica das histórias”

 

 



publicado por magnolia às 14:48
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O pequeno herói - parte I

Dizem que já não existem fadas, nem elfos, nem magos, nem bruxas, nem heróis nem outras personagens que povoam os nossos imaginários, que nos fazem sorrir e que nos fazem sonhar. Eu digo que é mentira e vou prová-lo com esta história. Mas não esperem um herói à moda antiga, não esperem que lhes fale de um cavaleiro corajoso ou de uma figura a saltar de telhado em telhado ou a correr mais rápido que um relâmpago! Este herói é bem diferente, é de um herói de carne e osso como tu ou eu, mas nem por isso menos herói.


Foi numa tarde solarenga de domingo que o conheci. O sol a aninhar-se no horizonte, o vento a obrigar-nos a vestir os casacos e o estômago a queixar-se que estava vazio e nós ainda sem vontade nenhuma de ir embora, de sair daquele lugar paradisíaco perto da praia. Tinha sido uma tarde fabulosa. Um jogo de bola na areia, um pic-nic a serio com panados e bolinhos de bacalhau, um baralho de cartas e muita, muita risada a dourar ainda mais o dia. Éramos vinte, conta certa, e já era normal juntarmo-nos ali todos os anos no primeiro domingo de Junho. Os nossos pais faziam férias por ali e por isso já éramos amigos de longa data. Aquele primeiro domingo marcava o inicio na nossa época balnear. Os nossos pais tinham todos casa de praia ali naquela zona, uma pequena vila piscatória alentejana. Depois deste Domingo, muitos outros se seguiam, embora nem sempre estivéssemos todos ao mesmo tempo. Era o dia oficial de abertura do tempo da praia e da reinação.


 



publicado por magnolia às 14:47
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Cláudia Moreira

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