.
imagem retirada da net
O espelho reflectia uma mulher que de inicio não reconheci. Os cabelos negros e rebeldes emolduravam um rosto bonito de traços quase perfeitos. A boca entreaberta deixava ver uns dentes brancos e o nariz perfeito. Mas não foi a boca, nem os dentes nem o nariz, foram os olhos daquela mulher no espelho, tão límpidos e azuis que me hipnotizaram. O brilho intenso e quase eléctrico não deixava qualquer dúvida sobre a intensidade da alma que aquele corpo guardava lá dentro. A mulher desapertou um pouco o quimono leve que a envolvia e deixou antever a pele bronzeada e sorriu. Depois, como se fosse uma cena em câmara lenta de um filme antigo ela afastou o quimono dos ombros e deixou-o deslizar pelas costas nuas indo cair no chão inanimado. O corpo nu no espelho era ainda jovem e bonito. Formas voluptuosas mas firmes. Ancas largas e cintura fina e o peito cheio que oscilava com a respiração. Um segundo elemento entrou na imagem do espelho deixando ver o cabelo ondulado e ligeiramente comprido, os olhos grandes e o rosto forte de homem. Depois o espelho reflectiu apenas a mão que pousou suavemente no baixo-ventre da mulher. Depois o rosto sorriu por cima do ombro direito e olhou directamente nos olhos da mulher de boca carnuda e foi essa boca que retribuiu o sorriso oferecendo esse sorriso como se fosse um beijo. A boca desse rosto beijou o pescoço nu da mulher e muito suavemente envolveu-a nos seus braços finos, apertando-a na medida certa. Fiquei a olhar a imagem no espelho. As mãos que se tocaram, os dedos dele que se entrelaçaram nos dela para logo se afastarem deixando-os livres para tocarem outras partes do corpo da mulher. Estava quente como se fosse Agosto e pela janela reflectida no espelho atrás dos dois corpos podia ver-se uma noite clara e cheia de estrelas. Uma música suave parecia sair de dentro dos corpos nus enchendo o quarto. Uns dedos ansiosos tocaram o peito bonito da mulher do espelho e ela fechou os olhos.
Demorei apenas um segundo, breve e longo como o tempo corre veloz mas que no fundo se arrasta até sermos capazes de o enfrentar que percebi.
Não queria abrir os olhos. Cerrei-os ainda com mais força. Senti o frio do Inverno nos ossos e um arrepio percorreu-me a pele gasta dos braços e das pernas.
Abri os olhos.
No espelho eu estava sozinha. Ninguém me amava a pele através de dedos macios. O grosso roupão tapava um corpo que se adivinhava gasto. O rosto, outrora belo, era agora rugoso e sem brilho. Os olhos azuis estavam mortiços e os lábios cerrados num esgar.
Desapertei o roupão e entreabri apenas um pouco. Não me apetecia ver aquele corpo destruído pela idade. Os peitos sem vida, o estômago proeminente, a barriga flácida. O triângulo mais escuro no baixo-ventre já não era apetecível e as coxas agora mais fortes eram brancas como a neve.
Tapei-me rapidamente e olhei para trás de mim através do espelho. Estava escuro lá fora e a janela estava semi-aberta. As cortinas baloiçavam com o vento agreste de Novembro.
Tinha sido apenas uma ilusão momentânea. A juventude tinha sido apenas uma ilusão momentânea. Um sonho bonito que passou num pestanejar de olhos…
Uma lágrima solitária tombou pelo meu rosto e foi cair no chão, silenciosa.
Voltei-me e fui ao armário onde encontrei um grande lençol branco cujas traças tinham feitos alguns estragos ao longo dos anos. Tapei com ele o espelho. Não precisava de ver reflectidos todos os dias os destroços de mim mesma. Não precisava que um espelho gritasse sem compaixão a minha decrepitude.
Deixo-o estar assim coberto tanto tempo que um dia já nem me lembrava que tinha um espelho. Deixei-o estar assim coberto tanto tempo que um dia já nem me lembrava que um dia tinha sido jovem e bonita.
Cláudia Moreira
Outras IDEIAS minhas
Ideias de outros que eu gosto de ler
- As conversas são como as cerejas
- As palavras que nunca te direi