Falar sobre tudo e mais alguma coisa
Quinta-feira, 26 de Agosto de 2010
O espelho

.



imagem retirada da net


 


 


 


O espelho reflectia uma mulher que de inicio não reconheci. Os cabelos negros e rebeldes emolduravam um rosto bonito de traços quase perfeitos. A boca entreaberta deixava ver uns dentes brancos e o nariz perfeito. Mas não foi a boca, nem os dentes nem o nariz, foram os olhos daquela mulher no espelho, tão límpidos e azuis que me hipnotizaram. O brilho intenso e quase eléctrico não deixava qualquer dúvida sobre a intensidade da alma que aquele corpo guardava lá dentro. A mulher desapertou um pouco o quimono leve que a envolvia e deixou antever a pele bronzeada e sorriu. Depois, como se fosse uma cena em câmara lenta de um filme antigo ela afastou o quimono dos ombros e deixou-o deslizar pelas costas nuas indo cair no chão inanimado. O corpo nu no espelho era ainda jovem e bonito. Formas voluptuosas mas firmes. Ancas largas e cintura fina e o peito cheio que oscilava com a respiração. Um segundo elemento entrou na imagem do espelho deixando ver o cabelo ondulado e ligeiramente comprido, os olhos grandes e o rosto forte de homem. Depois o espelho reflectiu apenas a mão que pousou suavemente no baixo-ventre da mulher. Depois o rosto sorriu por cima do ombro direito e olhou directamente nos olhos da mulher de boca carnuda e foi essa boca que retribuiu o sorriso oferecendo esse sorriso como se fosse um beijo. A boca desse rosto beijou o pescoço nu da mulher e muito suavemente envolveu-a nos seus braços finos, apertando-a na medida certa. Fiquei a olhar a imagem no espelho. As mãos que se tocaram, os dedos dele que se entrelaçaram nos dela para logo se afastarem deixando-os livres para tocarem outras partes do corpo da mulher. Estava quente como se fosse Agosto e pela janela reflectida no espelho atrás dos dois corpos podia ver-se uma noite clara e cheia de estrelas. Uma música suave parecia sair de dentro dos corpos nus enchendo o quarto. Uns dedos ansiosos tocaram o peito bonito da mulher do espelho e ela fechou os olhos.


Demorei apenas um segundo, breve e longo como o tempo corre veloz mas que no fundo se arrasta até sermos capazes de o enfrentar que percebi.


Não queria abrir os olhos. Cerrei-os ainda com mais força. Senti o frio do Inverno nos ossos e um arrepio percorreu-me a pele gasta dos braços e das pernas.


Abri os olhos.


No espelho eu estava sozinha. Ninguém me amava a pele através de dedos macios. O grosso roupão tapava um corpo que se adivinhava gasto. O rosto, outrora belo, era agora rugoso e sem brilho. Os olhos azuis estavam mortiços e os lábios cerrados num esgar.


Desapertei o roupão e entreabri apenas um pouco. Não me apetecia ver aquele corpo destruído pela idade. Os peitos sem vida, o estômago proeminente, a barriga flácida. O triângulo mais escuro no baixo-ventre já não era apetecível e as coxas agora mais fortes eram brancas como a neve.


Tapei-me rapidamente e olhei para trás de mim através do espelho. Estava escuro lá fora e a janela estava semi-aberta. As cortinas baloiçavam com o vento agreste de Novembro.


Tinha sido apenas uma ilusão momentânea. A juventude tinha sido apenas uma ilusão momentânea. Um sonho bonito que passou num pestanejar de olhos…


Uma lágrima solitária tombou pelo meu rosto e foi cair no chão, silenciosa.


Voltei-me e fui ao armário onde encontrei um grande lençol branco cujas traças tinham feitos alguns estragos ao longo dos anos. Tapei com ele o espelho. Não precisava de ver reflectidos todos os dias os destroços de mim mesma. Não precisava que um espelho gritasse sem compaixão a minha decrepitude.


 


Deixo-o estar assim coberto tanto tempo que um dia já nem me lembrava que tinha um espelho. Deixei-o estar assim coberto tanto tempo que um dia já nem me lembrava que um dia tinha sido jovem e bonita.


 


 


 


Cláudia Moreira




 


 


 



publicado por magnolia às 20:53
link do post | favorito

Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 



O dono deste Blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

...e mais ainda...
Cláudia Moreira

Cria o teu cartão de visita
Março 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


Ideias recentes

Entrudo

Fábula

primavera

música, da boa.

poema simples

A invenção do Amor

we all do have some nost...

manhãs

poema simples

That 'cause sometimes I t...

breve história de uma árv...

O Humor dos outros.

2013 - os livros que li, ...

Feliz Ano Novo!

Porque os livros (também)...

2013 - os livros que li, ...

That 'cause I think of my...

Estes já têm lugar na min...

Quem se lembra?

2013 - os livros que li, ...

Ideias antigas

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Julho 2007

Junho 2007

Março 2007

Março 2006

tags

todas as tags

links
Procuras alguma ideia em especial?
 
Ideias em pelicula
blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub